O acontecimento de Deus nos acontecimentos dos homens. A atmosfera é sempre alimentada por uma surpreendente Theosfera.

Quarta-feira, 31 de Dezembro de 2014

A. Não comecemos a desistir e nunca desistamos de começar

  1. Nestas alturas, é praticamente impossível ser original. Como notava Terêncio, «não se diz nada que já não tenha sido dito». As palavras parecem sempre velhas, mesmo quando falam do que é novo. Que esperar, então, do ano novo?

Após os desejos habituais, eis que nos preparamos para as amargas desilusões de sempre. À primeira vista, já nenhum ano parece ser novo. A própria palavra «novo» é bem antiga. Há quantos séculos não anda a humanidade a desenhar promessas de novidade?

 

  1. Por vezes, a vontade de desistir é grande. Mas é precisamente por isso que a determinação de persistir tem de ser ainda maior. Afinal e como dizia Sto. Agostinho, «é quando parece que tudo acaba que tudo verdadeiramente começa». Na vida, são muitas as situações em que tudo parece que vai acabar. Na vida, são muitos os momentos em que temos de ganhar forças para recomeçar.

O início de um ano sinaliza que a vida é um recomeço constante. Há 12 meses, também estávamos a começar um ano. Há 24 e há 36 meses, estávamos igualmente a começar outros anos. O que jamais podemos é desistir: não comecemos a desistir e nunca desistamos de começar.

 

B. Um dia para Jesus, um dia com Maria

 

3. Começamos cada ano com os ouvidos ainda a captar os ecos do Natal. E, na verdade, o Natal não «foi», o Natal «é», o Natal continua a ser. Em suma, o Natal nunca deixa de ser. É certo que, nos últimos dias, já teremos usado vezes sem conta a fórmula verbal «foi» na pergunta que mais fizemos e que mais nos fizeram: «Como foi o teu Natal?» ou «Como foi esse Natal?». Já António Gedeão escrevia que «tudo é foi». Mas não é isso o que sucede com o Natal. O Natal é uma manhã sem ocaso, é um começo sem fim.

Assim sendo, o Natal continua no tempo. Hoje mesmo é a Oitava do Natal. Aliás e como acabamos de escutar, foi oito dias depois do Seu nascimento que o Menino recebeu o nome de Jesus (cf. Lc 2, 21). Daí que, durante muitos anos, este fosse também o dia da festa do Santíssimo Nome de Jesus. Entretanto, o Tempo Litúrgico do Natal não acaba nesta Oitava. Ele só termina com a festa do Baptismo do Senhor, que este ano ocorrerá a 11 de Janeiro. Mas, no fundo, é sempre tempo de Natal. O Natal está no tempo para que possa estar na vida, para que possa estar na nossa vida no tempo.

 

  1. É, então, a Jesus que entregamos este nosso novo percurso no tempo, que queremos percorrer também na companhia de Maria, que tudo — e a todos — guarda em Seu coração (cf. Lc 2, 19). Com D. António Couto, saudámo-La, hoje, como «Senhora e Mãe de Janeiro, do Dia Primeiro e do Ano inteiro». Diante d’Ela nos sentimos «tão cheios de coisas e tão vazios de nós mesmos e de humanidade e divindade» Apesar de nos faltar muita coisa, ainda temos bastante. Falta-nos, porém, o essencial: «a simplicidade e a alegria» de Maria. Mas Maria está connosco, está connosco como Mãe.

Hoje ocorre a solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus. Sendo Mãe de Cristo e sendo Cristo o Filho de Deus, os cristãos cedo perceberam que Maria era Mãe de Deus. Não era só Mãe do homem Jesus, mas Mãe do Filho de Deus que encarnou em Jesus. O Concílio de Éfeso oficializou esta doutrina em 431. S. Cirilo de Alexandria já tinha tornado tudo muito claro: «Se Nosso Senhor Jesus Cristo é Deus e se a Virgem Santa O deu à luz, então Ela tornou-Se a Mãe de Deus».

 

  C. A paz tem um nome: Jesus

 

5. Foi por Maria que Jesus veio até nós. Será sempre com Maria que nós iremos até Jesus. Aquela que nos dá Jesus é sempre a melhor condutora para irmos ao encontro de Jesus. Façamos, portanto, como os pastores. Como os pastores, corramos (cf. Lc 2, 16). Procuremos ir depressa, sem demora, ao encontro de Jesus. O encontro com Jesus terá de ser sempre a prioridade da nossa vida e o centro da missão na vida.

Em Jesus, oferecido por Maria, encontramos o que mais procuramos para nós e o que mais desejamos para o mundo: a paz. Jesus não é apenas o portador da paz. Ele próprio é a paz hipostasiada. Aliás, é assim que o Messias é descrito por Miqueias: «Ele será a paz»(Miq 5, 5). Isaías apresenta o Menino «que nos nasceu» como o «príncipe da paz»(Is 9, 6). Por sua vez, os salmos apontam os tempos messiânicos como sendo marcados por uma grande paz (cf. Sal 72, 7).

 

  1. Não espanta, por isso, que, no século V, S. Leão Magno tenha dito que «o nascimento de Cristo é o nascimento da paz». De facto e como reconhece S. Paulo, Cristo «é a nossa paz»(Ef 2, 14). É aquele que derruba todos os muros de separação e que de todos os povos faz um só povo (cf. Ef 2, 14). Trata-se de uma paz única, sem paralelo. O próprio Jesus viria a dizer que a Sua paz era diferente: «Deixo-vos a paz, dou-vos a Minha paz; não vo-la dou como o mundo a dá»(Jo 14, 27).

É neste sentido que o Concílio Vaticano II recorda que a paz é muito mais do que a mera ausência de guerra. De resto, a ausência de guerra é, muitas vezes, ocupada com a preparação para a guerra. A paz é mais do que «pax», que, segundo os antigos romanos, resultava da negociação entre as partes desavindas. As partes continuavam desavindas, apenas não entravam em conflito. Semelhante é o conceito veiculado pelo grego «eirene». A paz, para os gregos da antiguidade, é uma tentativa de harmonia entre forças contrárias. As forças permanecem contrárias, unicamente não avançam para o combate.

 

D. Para estar no mundo, a paz tem de estar em cada pessoa

 

7. O hebraico «shalom» contém muito mais. A paz, aqui, é anterior a qualquer esforço humano. É um dom de Deus que faz o homem sentir-se completo, integral. É por isso que a paz só estará no mundo se estiver em cada pessoa que há no mundo. Antes da negociação, é fundamental pugnar pela conversão à paz. Jesus, no Sermão da Montanha, considera felizes os construtores da paz. Só eles serão «chamados filhos de Deus»(Mt 5, 9).

Importa perceber que o primeiro sinal de Deus é a paz. Quando Deus vem à terra em forma de criança, os enviados celestes entoam um cântico que diz tudo: «Glória a Deus nas alturas e paz na terra» (Lc 2, 14). A paz desponta, assim, como o grande indicador de que Deus já está entre nós.

 

  1. Desde 1968, o dia de ano novo tornou-se também o Dia Mundial da Paz. Pretendia Paulo VI colher inspiração na invocação que, neste dia, se faz de Jesus e de Maria: «Estas santas e suaves comemorações devem projectar a sua luz de bondade, de sabedoria e de esperança sobre o modo de pedirmos, de meditarmos e de promovermos o grande e desejado dom da paz, de que o mundo tem tanta necessidade». Com aquele grande Papa, continuamos a pedir para que «seja a paz, com o seu justo e benéfico equilíbrio, a dominar o processamento da história no futuro».

Para 2015, o Papa Francisco propõe um tema que parece ultrapassado, mas que se mantém actual: «Não mais escravos, mas irmãos». Infelizmente, no nosso mundo, ainda há mais de 35 milhões de pessoas que vivem na escravatura. E nem Portugal está inteiramente limpo desta mancha, com os 1400 escravos que (sobre)vivem no nosso país. Como bem refere o Santo Padre, «a escravatura é uma terrível ferida aberta no corpo da sociedade contemporânea e uma chaga gravíssima na carne de Cristo! Para a combater eficazmente, tem de se reconhecer, acima de tudo, a inviolável dignidade de cada pessoa».

 

E. Antes de mais, importa atingir o zero

 

9. Afinal, ainda há aspectos onde nem sequer atingimos o «grau zero» de humanidade. Ainda há aspectos onde nos encontramos abaixo de zero. E abaixo de zero, tudo é negativo, tudo é negação. Como pode haver paz no mundo se no mundo não há justiça nem respeito pela dignidade humana? Temos, pois, um longo caminho a percorrer. Temos muito que fazer ou, como diria Sebastião da Gama, «temos muito que amar».

Diante dos que vaticinam o iminente fim da história, é importante começar com urgência uma história de re-humanização do mundo. Sim, porque a humanidade ainda consegue ser muito não-humana, muito desumana. Para re-humanizar o mundo, diria que duas são as coisas que têm de acabar já: a guerra e a fome. Consequentemente, duas têm de ser as coisas que importa assegurar desde já: paz para todos e pão para cada um. Para re-humanizar cada pessoa que há no mundo, duas são também as coisas a que urge pôr fim: egoísmo e violência. E duas serão igualmente as coisas que é imperioso introduzir: solidariedade e educação.

 

  1. Neste início de ano, acolhamos o olhar com que Deus nos presenteia e a paz que Ele benevolamente nos concede (cf. Núm 6, 26). Não esqueçamos que o lugar onde a paz mais se decide é o nosso interior. Se o nosso interior não for indiferente, o nosso exterior começará a ser diferente. E a verdadeira novidade descerá à terra.

Que haja, pois, vida nova no ano novo. Não é o ano novo que faz a vida nova. Só uma vida nova fará o ano novo. Só uma vida nova trará o tempo novo, o mundo novo!

publicado por Theosfera às 10:42

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