- Há coisas que, quanto mais as damos, mais as temos. Indo mais longe, dir-se-ia que há coisas que só as temos na medida em que as damos.
De facto, há coisas que se não dermos, nunca as teremos.
- É o caso da misericórdia. Só tem misericórdia quem oferece misericórdia.
Aliás, como pode ter misericórdia quem não oferece misericórdia? Como pode alegar que a tem quem não a usa?
- É certo que a misericórdia está muito presente nos lábios. Mas também é verdade — uma penosa verdade — que a misericórdia está bastante ausente da vida.
E, às vezes, quem mais a faz vir aos lábios, menos a faz ver na (sua) vida.
- A bem dizer, a história da humanidade oscila permanentemente entre esta carência e esta urgência.
A história parece estar sempre a degolar a misericórdia. Onde encontrar, na história, os triunfos da misericórdia?
- A misericórdia parece estar sempre a ser encolhida — e engolida — pela severidade.
São, de facto, muito «tortos» — e tremendamente tortuosos — os caminhos daqueles que dizem cortar sempre «a direito».
- Um dos pecados originais da nossa vida foi a separação destas duas irmãs siamesas: a misericórdia e a justiça.
Dessa separação resultou uma entorse para cada uma. Sem misericórdia, a justiça altera-se. Sem justiça, a misericórdia adultera-se.
- Longe da companhia da misericórdia, a justiça tende a transformar-se em vingança.
Fora do manto da justiça, a misericórdia corre o risco de degenerar em indiferença.
- É, pois, nosso dever reagrupar o que propendemos a separar.
Chegou a hora de perceber que a justiça tem de ser misericordiosa e que a misericórdia tem de ser justa.
- Definitivamente, a misericórdia é o lar da justiça e a justiça é o lugar da misericórdia. Quando uma falta, as duas falham.
Todos sofremos quando a justiça se afasta da misericórdia e quando a misericórdia não se aproxima da justiça.
- A justiça não pode ser vista como condenação dos que pecam. E a misericórdia não pode ser entendida como branqueamento do pecado.
A justiça é misericordiosa quando dá mais uma oportunidade ao pecador. E a misericórdia é justa quando não se resigna ao pecado. E quando não trata o «enfermo» como se já estivesse «são». A misericórdia é paciente, persistente e sempre verdadeira!