- Na parafernália de textos sobre a misericórdia, sobrará espaço para alguma novidade?
Que faltará dizer quando quase tudo parece (já) ter sido dito?
- Falta, porventura, não tanto quem nos ensine a compreender, mas quem nos ajude a escutar.
Falta, seguramente, quem pelos sobressaltados caminhos da história nos apresente a misericórdia na sua raiz, no seu ventre, na sua fonte.
- Em «A Misericórdia, Lugar e Modo», D. António Couto cumpre, uma vez mais, o seu múnus de perscrutador das nascentes.
O lugar primordial da misericórdia é o próprio Deus, é o amor de Deus.
- É por isso que, mais que um tratado de Teologia, este livro desponta como um precioso ensaio de Teofilia.
O aparato conceptual como que se vê tamisado — e permanentemente iluminado — pela recorrente centralidade do amor divino.
- No fundo, a misericórdia é uma inundação de amor, jorrado em bátegas sem fim.
É do amor em «sentido descensional» que se parte nesta obra e na nossa vida.
- Antes do amor a Deus vem sempre o infindável amor de Deus, que não deixa nada de fora nem põe ninguém de lado.
A misericórdia não se fica pelo que tem «valor atraente [e] apetecível». Ela valoriza até o «desvalor» e o (aparentemente) «repugnante».
- A esta luz, fica bem claro que a lógica do amor não é a da devolução, mas a da contínua expansão.
O amor é mais para difundir do que para retribuir. Como percebeu Carmine di Sante, o que resulta do mandamento de Deus é: «porque Eu te amei, tu deves amar o outro».
- Seja próximo ou distante, o outro há-de merecer sempre um amor constante.
É sob este pano de fundo que ressoa a oração de Deus, extraída do Talmude da Babilónia: «Que Eu possa tratar os Meus filhos com o atributo da misericórdia e que, no Meu relacionamento com eles, pare no limite da execução da justiça».
- Uma leitura atenta merece o excerto de Êxodo 34, 6-7, descrito como «a magna carta do amor de Deus».
Trata-se apenas de dois versículos, donde ressumam lições expostas com o rigor de exegeta e o primor de esteta.
- Como corolário, aparece Jesus enquanto «transparência da misericórdia do Pai».
Jesus é a misericórdia em acção: «perante as fomes» e «perante a dor». Daí que o modelo do discípulo seja o samaritano. Porque para ele a misericórdia foi (muito) mais que uma palavra mecanicamente bolçada pelos lábios!