A. Ser santo é tornar-se santo
- Ao contrário do que possamos pensar, Deus fala, Deus nunca cessa de falar: «Senhor — assim rezava Sören Kierkegaard —, Tu falas, mesmo quando Te calas. Calas-Te por amor e por amor falas. Tanto és no silêncio como na palavra. Tu és sempre o mesmo Pai: guias-nos com a Tua voz e elevas-nos com o Teu silêncio». É nesse falar silencioso — e nesse silêncio falante — que Deus chama. E não chama apenas alguns; chama-nos a todos. Deus chama-nos a todos à vida. Mas não nos chama a uma vida qualquer; chama-nos para uma vida com Ele.
A vocação é, pois, uma convocação e — podemos dizê-lo — uma provocação. É uma convocação universal e uma provocação muito concreta. A vida só é vida quando se abastece na fonte e quando atinge o cume. A vocação vem de Deus e encaminha-nos para Deus pois a fonte da vida é Deus e o cume da vida é Deus. O Concílio Vaticano II insiste na «vocação universal» à santidade. É por isso que a santidade não devia ser a excepção, embora, em si mesma, ela seja sempre excepcional.
- A santidade é natural em Deus e sobrenatural em nós. O que Deus é por natureza, nós somos chamados a ser por dom de Deus. Ser santo é, por conseguinte, tornar-se santo. E tornar-se santo é, no fundo, concretizar o desígnio primordial da criação.
Se o homem é imagem de Deus (cf. Gén 1, 26-27), e se Deus é santo, então o homem realiza a sua semelhança com Deus procurando ser santo. O homem procura ser santo não inventando uma qualquer santidade, mas incorporando a santidade de Deus na sua vida. Aliás, o próprio Deus deixa entrever que é pela santidade que o homem se torna Sua imagem. É o que encontramos no célebre preceito do Levítico, recordado por S. Pedro: «Sede santos, porque Eu, vosso Deus, sou santo»(Lev 11, 44; cf. 1Ped 1, 16).
B. Só há santidade pela santificação
3. Daí a necessidade da conversão, já que ainda estamos longe da santidade oferecida por Deus. É mediante o apelo à conversão que, segundo S. Marcos, Jesus começa a Sua missão: «Arrependei-vos e acreditai no Evangelho»(Mc 1, 15).
Só há santidade através de um percurso de santificação. A santificação é todo um processo de conversão, de transformação e de transfiguração. É no âmbito de tal processo que vamos passando da vida velha à vida nova, do pecado à graça. O santo é o pecador que não se resigna ao pecado. O santo, como afirmou Aan Su-Ky, «é o pecador que não desiste»: que não desiste de vencer o pecado.
- A santidade é uma prova de resistência e um caminho de persistência. Temos de ter consciência dos nossos limites e de perceber que, sem Deus, nada conseguimos, nada de bom podemos alcançar. De resto, o próprio Jesus já nos preveniu contra qualquer devaneio: «Sem Mim, nada podeis fazer»(Jo 15, 5). Foi n’Ele que S. Paulo viu todas as possibilidades em aberto: «Tudo posso em Cristo que me dá força»(Fil 4, 13). Os santos abdicam de ser eles para deixar que Cristo seja neles (cf. Gál 2, 20). Os santos escolheram não ter vida própria, optando pela vida de Cristo, pela vida com Cristo. Mas não é isso o que é suposto todos fazermos desde o Baptismo? O problema é que nem sempre o que é verdade no plano sacramental se torna verdade no plano existencial. O problema é que a palavra dos lábios diz uma coisa e a palavra da vida revela outra coisa, muito diferente.
Tornar-se santo não é fácil. Mas também não é impossível. Hoje, celebramos tantos que demonstraram que ser santo, afinal, é possível. Hoje, celebramos o que muitos (já) são e o que todos nós somos chamados a ser. Muitos já conseguiram o que nós também podemos alcançar. A santidade não é só a meta, há-de ser também o caminho. Aliás, só pode chegar à meta da santidade quem se esforça por percorrer caminhos de santidade.
C. Celebramos não só uma morte santa, mas toda uma vida santa
5. Desde sempre, houve cristãos que acolheram este desafio. Não admira, por exemplo, que o Livro dos Actos dos Apóstolos chame «santos» aos cristãos que estavam em Lida (cf. Act 9, 32). Ser cristão era ser santo e, como nos primeiros tempos havia perseguições, então ser cristão e ser santo era ser mártir.
Por tal motivo, a Igreja, desde muito cedo, teve um dia para assinalar todos os mártires. Curiosamente, esse dia chegou a ser o dia 13 de Maio. Foi em Roma, depois de o Papa Bonifácio IV ter convertido o panteão do Campo de Marte num templo dedicado à Virgem Santíssima e a todos os mártires. No século VIII, o Papa Gregório III erigiu, na Basílica de S. Pedro, uma capela ao Divino Salvador, a Nossa Senhora, aos Apóstolos e a todos os mártires e confessores. Foi, entretanto, o Papa Gregório IV quem, no século IX, fixou esta festa no dia 1 de Novembro.
- A festa de Todos os Santos é a festa da santidade, é a festa da santidade viva, é a festa da santidade em vida. Nos santos, não celebramos apenas uma morte santa. Em cada santo, celebramos toda uma vida santa. É vital perceber que, embora celebremos os santos depois da morte, eles foram santos durante a vida. Não é a vida que nos impede de sermos santos. O santo não é extraterrestre. Não é sobre-humano. É da nossa terra. Pertence à nossa condição. Tantos são os santos que foram da nossa família. Ser santo é ser verdadeiramente humano, é participar na construção de um mundo melhor. Ser santo é intervir na transformação da humanidade. É não pactuar com a injustiça. É falar com os lábios e testemunhar com a vida. A santidade está ao alcance de todos. É o que há de mais democrático e invasivo.
A santidade faz de nós irmãos. A santidade não é indiferença; é diferença. Santo não é aquele que se mostra indiferente ao que ocorre à sua volta. A santidade nunca é fria. A santidade é quente, calorosa. O santo abraça, ri, chora, grita, insiste, persiste e nunca desiste. A santidade é a surpresa da paz no meio da tempestade. A santidade não é estrepitosa. Muitas vezes, até é silenciosa, mas sempre interveniente, interpelante. A santidade acontece em casa, na estrada, no trabalho.
D. As (provocadoras) felicitações de Jesus
7. Os santos não estão apenas no altar nem figuram somente nos andores. Não há só santos de barro. Há muitos santos de carne e osso, às vezes, mais osso que carne. Há muitos santos com fome. Há muitos santos na rua. Há muitos santos de enxada na mão. Há muitos santos com lágrimas no rosto e rugas na face. É neste contexto que Jesus nos dirige várias felicitações que são outras tantas provocações. A felicidade não está onde costumamos pensar que ela esteja. As Bem-Aventuranças são provocações de felicidade. Afinal, é possível ser feliz chorando e sofrendo.
Feliz, por estranho que pareça, é o que começa por aceitar ser pobre de espírito (cf. Mt 5, 3). Ser pobre de espírito não é ser pobre de Espírito Santo nem falho de inteligência. Aqui, trata-se de ser pobre no espírito e de ter espírito de pobre. Ser pobre não é tanto não ter; é sobretudo partilhar o que se tem. Não esqueçamos que, como disse Bento XVI, Deus fez-Se homem e fez-Se homem pobre. No fundo, ser pobre é ser humilde, ou seja, é não querer afirmar-se pelo poder económico ou pelo poderio social. Ser pobre é ser último e querer estar ao lado dos últimos. São estes que Jesus chama para a frente. Ele próprio o disse: «Os últimos serão os primeiros e os primeiros serão os últimos»(Mt 20, 16).
- Até a circunstância mais dolorosa pode ser a mais felicitante porque Deus nos aparece nela. É por isso que felizes podem ser os que choram (cf. Mt 5, 4) porque Deus os consola. Num mundo de violência, Jesus proclama felizes os mansos (cf. Mt 5, 5). Num tempo pejado de injustiças, Jesus declara felizes os que têm fome e sede de justiça (cf. Mt 5, 6), bem como os perseguidos por causa da justiça (cf. Mt 5, 10). Numa época de vinganças, Jesus apresenta como felizes os misericordiosos (cf. Mt 5, 7).
Numa era em que a corrupção alastra e os jogos escuros compensam, Jesus garante que felizes são os puros de coração, os que não têm dois rostos, mas uma só cara (cf. Mt 5, 8). Numa altura em que a violência não pára de crescer, Jesus considera felizes os construtores da paz: não os passivos, mas os pacíficos e pacificantes (cf. Mt 5, 9). Finalmente e como corolário, Jesus assegura que felizes são os ultrajados e perseguidos e aqueles de quem é dita toda a espécie de mal por causa d’Ele, por causa do Evangelho (cf. Mt 5, 11). É a provocação suprema. Mas, no fundo, trata-se da felicidade total. Do exterior sobrevêm obstáculos, mas no interior encontra-se a força para os vencer: o próprio Deus.
E. Tudo se decide entre a pobreza e a perseguição
9. Hoje, continua a haver quem seja perseguido e morto por causa de Jesus. Há quem não vacile nem recue. No fundo, a associação entre santidade e martírio, típica dos primeiros tempos, mantém-se. Anote-se que ser mártir é ser testemunha, pelo que ser santo e ser mártir nunca deixaram de ser confinantes. Já Sto. Agostinho percebeu que, nesta vida, vamos caminhando entre as perseguições do mundo e as consolações de Deus. Sucede que onde as perseguições abundam, as consolações superabundam. E, depois, como notou o Concílio Vaticano II, aprouve a Deus salvar o mundo pela pobreza e pela perseguição.
É por isso que a primeira e a última bem-aventurança se enlaçam mutuamente, entrelaçando todas as outras. A santidade começa pela pobreza, pelo despojamento e é acompanhada sempre pela perseguição. Não é a perseguição que nos há-de fazer desistir nem recuar. Afinal, o Apocalipse fala-nos da incontável multidão, composta pelos «que vieram da grande tribulação, pelos que lavaram as túnicas e as branquearam no Sangue do Cordeiro»(Ap 7, 14).
- A santidade não é um passeio; é um testemunho exigente. Pode não implicar derramamento de sangue, mas requer imperativamente a oferta da vida. Toda a santidade é feliz e toda a felicidade pode ser santa. A santidade leva-nos a tomar consciência de que somos filhos de Deus (cf. 1Jo 3, 1-2) e, portanto, irmãos uns dos outros.
O céu está cheio de santos. Não deixemos que o mundo fique vazio de santos. Cultivemos uma santidade feliz e uma felicidade santa. Não tenhamos medo de ser santos. Ser santo é felicitar e semear felicidade. Ser santo é ser feliz e colher felicidade.