O acontecimento de Deus nos acontecimentos dos homens. A atmosfera é sempre alimentada por uma surpreendente Theosfera.

Domingo, 06 de Novembro de 2016

A. Do fim do ano ao fim da vida

  1. Perto do fim do ano litúrgico, somos instruídos acerca do fim da nossa vida. Habitualmente, o fim assusta, o fim atemoriza, o fim deprime. Mas o fim também motiva, estimula e faz avançar. Se repararmos, a nossa vida é um caminho em direcção ao fim. Hoje, estamos mais perto do fim do que estávamos ontem.

É importante, por isso, que tomemos consciência do fim que nos espera, do fim para o qual caminhamos. Gandhi fazia do fim a questão essencial da existência: «O que importa — dizia — é o fim para o qual eu sou chamado».

 

  1. E, na verdade, nós somos chamados para o fim, para um bom — e belo — fim. Se tivéssemos mais presente o nosso fim, a nossa vida seria seguramente muito diferente, muito melhor. Muitas vezes, dá a impressão de que não sabemos para onde vamos, para onde caminhamos.

A perda do sentido da eternidade afecta o nosso caminhar no tempo. Parece que não sabemos o que fazemos no tempo. Limitamo-nos a uma espécie de gestão corrente. É o que decorre da expressão que muitos usam à guisa de lema: «Um dia de cada vez».

 

B. Sem a eternidade, que sentido tem o tempo?

 

3. Por estranho que pareça, quando perdemos a eternidade, não ganhamos mais tempo. Se repararmos, foi quando começou a perder o sentido da eternidade que a humanidade começou a sentir que estava a perder tempo. De facto, nunca, como hoje, nos queixamos da falta de tempo e das perdas de tempo. Quem já não confessou não ter tempo ou não poder perder tempo?

Sem a eternidade, que sentido tem o tempo? Sem o horizonte da eternidade, o tempo parece que encolhe. Filhos de um tempo sem tempo, sentimos que o nosso tempo está reduzido ao instante, a uma (vertiginosa) sucessão de instantes. O obscurecimento do sentido da eternidade contribui, assim, para o empobrecimento do sentido do tempo. Até já nos sentimos pobres de tempo.

 

  1. Para muitos de nós, o tempo já mal inclui o futuro e quase exclui o passado. Limita-se ao presente. Tudo é apostado no instante, tudo é gasto no momento. O sentido da eternidade permitia estar no tempo com os olhos voltados para lá do tempo. Sem o sentido da eternidade, está a tornar-se difícil vislumbrar algo para lá do instante.

Já não é o tempo que é vivido a partir da eternidade. O tempo é, cada vez mais, consumido a partir do instante. A eternidade deixou de ser critério para o tempo. O critério para o tempo passou a ser o instante.

 

C. Nem a morte é fim

 

5. É neste contexto que o Evangelho nos aparece, uma vez mais, como portador de uma boa — e muito bela — notícia. O Evangelho certifica que o fim não é só — nem principalmente — termo. Para o Evangelho, o fim não é destruição nem dissolução. O fim, segundo o Evangelho, é plenitude e consumação.

O fim último, não evitando obviamente a morte, não é morte. Jesus inaugura o fim sem fim, o fim para lá do próprio fim. Jesus é a revelação do Deus da Vida. Até na morte Se manifesta o Deus da Vida. Efectivamente, «não se trata de um de Deus de mortos, mas de vivos, porque, para Ele, todos vivem» (Lc 20, 38).

 

  1. Para Jesus, nem os mortos estão mortos. Para Jesus, até os mortos estão vivos. A morte de Jesus foi uma morte «morticida», uma morte que matou a própria morte. Neste sentido, é fundamental que olhemos para o fim de frente e com muito ânimo. É necessário, com efeito, catequizar a própria morte ou, melhor, a nossa relação com a própria morte.

Não façamos da morte um tabu ou uma fonte de desespero. Olhemos para a morte com olhos de esperança. A morte é a grande — e decisiva — oportunidade. É certo que custa muito morrer e custa bastante pensar na morte. Mas é igualmente verdade que é sumamente reconfortante olhar para a morte como o fim que nos abre as portas para a vida sem fim.

 

D. A eternidade não é continuidade, mas novidade

 

7. A esta luz, percebemos melhor o que disse a mãe de São Sinforiano e que a Igreja recorda num dos prefácios da Oração Eucarística da Missa de Defuntos: «A vida não acaba, apenas se transforma». Quem vive com Cristo na terra, com Cristo continua a viver na eternidade.

É por isso que a Liturgia deste Domingo nos propõe uma meditação sobre os horizontes últimos do homem, garantindo-nos a vida que não acaba. Na Primeira Leitura, temos o testemunho de sete irmãos que deram a vida pela sua fé, durante a perseguição movida contra os judeus por Antíoco IV Epifanes. Aquilo que motivou os sete irmãos mártires, aquilo que que lhes deu força para enfrentar a tortura e a morte foi, precisamente, a certeza de que Deus reserva a vida eterna àqueles que, neste mundo, percorrem, com fidelidade, os Seus caminhos.

 

  1. No Evangelho, Jesus assegura que a ressurreição é a felicidade que nos espera. Ao mesmo tempo, acautela-nos da tentação de avaliarmos a eternidade à luz das nossas categorias temporais. A eternidade não é mera continuidade; é total novidade. Assim sendo, não devemos olhar para a eternidade como uma cópia do tempo; devemos, sim, olhar para o tempo como uma antecipação da eternidade. Porque, em verdade, a eternidade começa no tempo, o Céu começa na Terra.

Notemos que a catequese sobre a morte acaba por ser uma catequese sobre a ressurreição. O texto que acabamos de escutar situa-nos em Jerusalém, nos últimos dias antes da morte de Jesus. É, portanto, pouco antes da Sua morte que Jesus nos instrui sobre a ressurreição. Trata-se, pois, de um texto eminentemente pascal.

 

E. Quem com Cristo viver nada tem que temer

 

9. Os saduceus colocam a Jesus uma pergunta capciosa porque, não acreditando na ressurreição, congeminavam uma vida futura como replicação da vida presente. Não tinham o sentido da novidade, mas apenas da repetição. Quem era casado no tempo, continuava casado na eternidade. Se uma mulher tivesse casado sete vezes no tempo, de quem seria ela esposa na eternidade?

Como podemos notar, o escopo dos saduceus era ridicularizar a crença na ressurreição. Uma mulher casou-se, sucessivamente, com sete irmãos, cumprindo a lei do levirato. Esta lei preceituava que o irmão de um defunto que morreu sem filhos devia casar com a viúva, a fim de dar descendência ao falecido, impedindo que os bens da família fossem parar a mãos estranhas (cf. Dt 25,5-10). Mas quando ressuscitarem, ela será mulher de qual dos irmãos?

 

  1. A primeira parte da resposta de Jesus (cf. Lc 20, 27-36) afirma que a ressurreição não é continuidade, mas novidade. A ressurreição não é ressuscitação, mas transformação. Numa vida ressuscitada, a questão do casamento não se coloca: não por uma qualquer depreciação do matrimónio, mas pelo facto de a única preocupação ser louvar a Deus. A segunda parte da resposta de Jesus (cf. Lc 20, 37-38) é uma proclamação da certeza da ressurreição.

Jesus recorre à «Torah», mais propriamente ao episódio da sarça-ardente (cf. Ex 3,6). Nele, Deus revela-Se a Moisés como «o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacob». Ora, se Deus Se apresenta dessa forma, muitos anos depois de Abraão, Isaac e Jacob terem desaparecido deste mundo, é porque os Patriarcas não estão mortos. Para os judeus, um homem morto é aquele que perde a protecção de Deus. Por conseguinte, se a Bíblia invoca o «Deus de Abraão, de Isaac e de Jacob», é porque eles estão vivos. E se estão vivos, podemos falar de ressurreição. Esta é para todos, para nós também. Quem com Cristo viver nada tem que temer. Na vida e na morte, Cristo é sempre mais forte!

 

publicado por Theosfera às 06:57

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