A. Chamados à «medida alta da vida cristã»
- Para Deus, tudo o que seja menos que o máximo é pouco. Em tempos de «medianocracia», a mediania parece contagiar toda a nossa vida. É natural que o projecto de Deus se afigure provocador, mas é assim que Ele nos mostra o Seu amor. Deus exige porque ama, Deus ama porque exige. No fundo, exigir é acreditar. Deus exige de nós porque acredita em nós.
Uma coisa, porém, é certa. Uma fé minimalista acaba por tolher o coração e por obscurecer a vista. Deus não é de mínimos. Ele quer tudo de nós porque também dá tudo de Si. Dá-nos o Seu Filho, dá-nos a vida de Seu Filho, dá-nos até o sangue de Seu Filho. Haverá amor maior? Haverá sequer amor igual?
- Neste sentido, a vida cristã não pode ser mensurada com uma medida qualquer. Como bem notou o Papa São João Paulo II, nós somos chamados à «medida alta da vida cristã». Tanto mais que, segundo o mesmo Sumo Pontífice, a «religiosidade superficial» redunda sempre em «minimalismo ético».
É um facto que nós lamentamos muito tal minimalismo ético. Mas que fazemos para ultrapassar uma religiosidade tendencialmente superficial? É preciso acordar. É preciso acordar para recordar que a fidelidade não está na mediocridade. A fidelidade requer sempre muito de insatisfação.
B. Ser perfeito é ser feito por Deus
3. Não é com mínimos que alcançamos o máximo. Deus não quer pouco. Deus não quer muito. Deus quer tudo. E Deus quer tudo porque Ele é tudo e porque dá tudo. Daí que já do Antigo Testamento nos venha um veemente convite à santidade. «Sede santos» (Lev 19, 2), diz Deus.
Habitualmente, tendemos a achar que a santidade, sendo bela, não é para nós. Achamos que a santidade é demais para nós. Só que Deus acredita mais em nós que nós mesmos. «Sede santos», diz Deus. Porquê? Tão-somente, e acima de tudo, porque Deus é santo. A santidade no homem é sinal de fidelidade à santidade de Deus. É pela santidade que realizamos a imagem e semelhança com Deus. Se Deus é santo e se nós somos a Sua imagem e semelhança (cf. Gén 1, 26), então é pela santidade que nos tornamos parecidos com Ele.
- Jesus, que não veio revogar mas completar, actualiza este preceito com outro apelo insistente: «Haveis de ser perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito» (Mt 5, 46). De novo aparece Deus como termo de comparação. Mas não será excessivo? Afinal, que é o homem em comparação com Deus? Em relação a Ele, não nos sentiremos sempre «pó e cinza», como reconheceu Abraão (cf. Gén 18, 27)?
Acontece que ser perfeito é deixar-se fazer por Deus. A perfeição não é obra nossa, é obra de Deus em nós. É por isso que a perfeição não resulta de uma qualquer ambição. A perfeição, por estranho que nos pareça, advém sempre pela via da humildade. A perfeição é um caminho que não se pode fazer sozinho, à margem de alguém. A perfeição só se pode alcançar quando nos abrimos a alguém, a Deus.
C. Cristo não desfaz o que encontra, mas refaz o que existe
5. Em Cristo, Deus quer fazer este caminho connosco. Ele não Se limita a introduzir o novo. Ele procura também renovar o antigo. Por conseguinte, a Sua preocupação não é desfazer o que encontra, mas refazer o que existe. Só que Ele não quer que fiquemos onde estamos. A Sua vontade é que cheguemos sempre mais longe. Daí as antíteses que registamos no Sermão da Montanha. Cristo não rejeita o antigo, mas também não Se conforma com ele. O antigo é importante, mas não é bastante.
O problema é que nós estacionamos facilmente no antigo. Passamos o tempo a exaltar o novo, mas gastamos a vida no antigo. Por exemplo, não será que, na prática, Talião tem mais discípulos do que Cristo?
- Quantos de nós estão dispostos a dar a face esquerda a quem nos agride a face direita (cf. Mt 5, 39)? Achamos que «dar a outra face» é sinal de fraqueza. Mas que ganhamos com a estratégia do «olho por olho e dente por dente» (cf. Mt 5, 38)? A irmos por aqui, não vamos longe. Ofender quem nos ofende não retira a ofensa feita e alastra o campo das ofensas cometidas. É preciso perceber que a vingança não faz justiça, só contribui para estender o ódio.
A irmos por aqui, dificilmente sairemos daqui. Como é costume dizer-se, o resultado de «olho por olho e dente por dente» é o mundo acabar cego e desdentado.
D. Discípulos de Cristo ou de Talião?
7. É curioso que esta lei, de que Jesus Se demarca, encontra-se em alguns textos do Antigo Testamento. Veja-se o caso de Levítico 24, 19, onde se estabelece que «se um homem ferir o seu próximo, far-se-á o mesmo a ele». E no versículo seguinte, enuncia-se o princípio: «Fractura por fractura, olho por olho, dente por dente; o dano que alguém fizer a outro será feito a ele».
Sucede que este princípio também pode ser encontrado fora da Bíblia e até antes que ela fosse escrita. De facto, no Código de Hamurabi (datado de 1700 anos antes de Cristo) já aparece estipulado que a pena para um crime há-de ser idêntica ao prejuízo provocado.
- Esta legislação é conhecida sob o nome de «Lei do Talião», denominação que não aparece nem na Bíblia nem no referido Código de Hamurabi. Essa designação deriva da expressão latina «lex talionis» (lei do talião). «Talião» vem do latim «talis» (tal), que significa «idêntico» ou «semelhante».
Por muito estranho que nos pareça, esta lei até representou um avanço. É que, antes, a tendência era para responder a um crime com um crime ainda maior. Pensava-se que o mal devia ser combatido com um mal maior. Não se tinha em conta que mal em cima de mal não apaga o mal; só alastra o mal.
E. A melhor maneira de destruir os inimigos
é transformá-los em amigos
9. Jesus vai muito mais longe. Ele não quer vencer o mal com um mal maior nem tão-pouco com um mal semelhante, da mesma proporção. Jesus quer vencer o mal com o bem. É por isso que, como nota a oração atribuída a São Francisco de Assis, onde há ódio deve ser colocado o amor, onde há ofensa deve ser colocado o perdão, onde há discórdia deve ser colocada a união. Nem os inimigos ficam de fora. A lei antiga estipulava o amor ao próximo e o ódio pelo inimigo (cf. Mt 5, 43). Parece uma norma justa. Só que nem tudo o que parece é. Para a justiça recebida de Cristo, o amor inclui obviamente o próximo, mas não exclui o inimigo.
O amor é sempre invasor. Parafraseando Santa Teresa de Calcutá, dir-se-ia, em relação ao amor, que o próximo merece-o e o inimigo precisa dele. Amar quem nos ama é humano. (Desumano seria odiar quem nos ama). Mas amar quem nos odeia é sobre-humano, é cristão.
- Entende-se, assim, que Gustavo Gutiérrez tenha notado, com alguma ponta de ironia, que quem não tem inimigos não é um cristão completo pois ainda lhe falta alguém para amar. Se é importante amar os inimigos, como pode amá-los quem os não tem? Não nos esforcemos, porém, por arranjá-los porque eles acabam por aparecer. Nessa altura, tratemo-los com magnanimidade, com mansidão e com amor. Consta que, um dia, alguém admoestou Abraham Lincoln, acusando-o de ser demasiado benevolente para com os seus inimigos. Resposta pronta do então presidente dos Estados Unidos: «Mas eu destruo os meus inimigos quando os transformo em amigos».
Não há dúvida de que a melhor maneira de destruir um inimigo é transformá-lo em amigo. Nem sempre se conseguirá, mas é fundamental que nunca se desista de tentar. É urgente, portanto, que a amizade — ou a «amorizade», como dizia Luandino Vieira — chegue ao terreno da própria inimizade. Será desta maneira que a paz inundará a terra inteira. E só assim transformaremos a humanidade numa verdadeira fraternidade!