A. Há censuras que se tornam elogios
- Há elogios que deviam ser tomados como censuras e há censuras que poderíamos tomar como elogios. O que os parentes dizem a respeito de Jesus tem o objectivo de constituir uma censura, mas no fundo estão a fazer-Lhe um grande elogio. Alegavam eles que Jesus estava fora de Si (cf. Mc 3, 21). Sem querer, estavam a fazer-Lhe um grande elogio, já que estavam a afirmar uma enorme verdade.
De facto, Jesus viveu sempre «fora de Si». Jesus nunca pensou em Si. O centro de Jesus nunca esteve em Si. Jesus foi alguém — verdadeira e profeticamente — «excêntrico». O centro de Jesus era o Pai e a humanidade. Foi por isso que Jesus entregou a Sua vida ao Pai. Foi por isso que Jesus entregou a Sua vida pela humanidade. Eis o que falta, eis o que urge: hoje e aqui, é fundamental estar «fora de si».
- O nosso maior problema é quando nos centramos nos nossos problemas. Porque, nessa altura, já nos estamos a distanciar de Jesus. Ao contrário de Jesus, nós vivemos muito voltados para nós. Estamos muito «ego-centrados», muito «ego-sentados». Com efeito, a revolução individualista desencadeou uma cultura egocêntrica e uma mentalidade egolátrica. O «eu» está no centro ou em cima. O outro encontra-se atrás e em baixo.
É o «eu» que está no centro, é ao «eu» que prestamos culto. Só nos ocupamos dos outros quando os outros servem o nosso «eu». É certo que nunca estivemos tão perto dos outros. Mas também é verdade que nunca nos teremos sentido tão distantes dos outros. O mal não é ser diferente. O mal é passar a ser indiferente. Infelizmente, estar perto nem sempre costuma equivaler a ser próximo.
B. Da «egolatria» à «egocracia»
- O «eu» parece gostar de se afirmar perante os outros e também — o que é pior —à custa dos outros. No fundo, cada «eu» sente-se detentor de todos os direitos. Cada outro é encarado como portador de todos os deveres. Eis a síntese do nosso tempo: tanta gente perto; tanta gente só. Todos vivem ao lado de todos. Mas ninguém parece saber de ninguém. Aos olhos de muitos, será que alguém é mais que ninguém?
É óbvio que, no tropel de mudanças que estão em curso, o «eu» ganha muito. Mas arrisca-se a perder o mais importante. A lógica do lucro valoriza a transacção comercial e subestima o serviço gratuito.
Ainda há muitos que servem. Mas são cada vez mais os que se servem. O «self service» é uma prática e é sobretudo um sinal. Servir está a ser um verbo cada vez mais reflexo. Para não poucos, servir é, acima de tudo, servir-se. É urgente perceber que nada somos sem os outros. Inferno não são os outros. Inferno é viver sem os outros, contra os outros. Era bom que percebêssemos que existir é nunca desistir, é nunca desistir dos outros.
- Acontece que a revolução individualista parece ter passado a uma segunda — e mais perigosa — fase. Como se já não bastasse a «egolatria», temos de suportar também a «egocracia». É que, enquanto a «egolatria» leva cada um a viver para si mesmo, a «egocracia» leva a pretender que os outros vivam em função de nós próprios.
Curiosamente, já Oscar Wilde se apercebera de que «egoísmo não é tanto viver à nossa maneira, mas exigir que os outros vivam como nós queremos». Estamos, assim, a ser arrastados para a dominação do mais descontrolado poder: o poder do «eu». E em vez de uma só ditadura, acabamos por estar submetidos a muitas ditaduras: às «ditaduras» de muitos «eus».
C. A melhor vitamina contra o egoísmo
- Não vivemos em ditadura, mas será que vivemos em autêntica liberdade? Ao menos numa ditadura, sabemos que não há liberdade. Será que, em democracia, nos sentiremos sempre livres? Entre a dor da ausência e a amargura de uma desilusão, que espaço sobra para a humana realização? É indiscutível que, como assinalou Ruy Barbosa, «a pior democracia é melhor que a melhor ditadura».
Só que há situações em que — entre a ditadura e a democracia — as diferenças são mínimas, tornando-se as linhas de demarcação praticamente imperceptíveis. O relacionamento humano surge cada vez mais contagiado por sintomas de intransigência, rigidez e intolerância. O que mais nos sobressalta já não é sequer a ditadura de um partido ou de um grupo. O que mais nos atormenta, hoje, é a crescente «tirania do eu». Nos tempos que correm, a mais pesada autocracia é a «egocracia». Obscurecidos os ideais e esgotadas as ideologias, resta a afirmação do «eu»: sobre os outros e — o que é mais grave — contra os outros.
- É por isso que Jesus é a maior alternativa a esta cultura individualista. E é desta «vitamina C» — é desta «vitamina Cristo» — que nós precisamos para mudar tudo isto. De facto, Jesus Cristo representa, como ninguém, a referência suprema do centramento descentrado. O centro de Jesus não é Jesus. O centro de Jesus é Deus e o Homem. Jesus é totalmente para Deus e totalmente para o Homem.
Foi neste sentido que o Concílio Vaticano II teve o cuidado de advertir que a luz dos povos não é a Igreja, mas Cristo. Por conseguinte, o que há-de resplandecer na Igreja é o que sempre transpareceu em Cristo: Deus e o Homem.
D. De joelhos para acolher e de pé para caminhar
- Assim sendo, o importante para a Igreja não há-de ser o aparato organizativo, mas a experiência espiritual e a acção social. A Igreja tem de ser perita na relação com Deus e mestra no encontro com os homens. Quando a Igreja se volta demasiado para si ofusca a luz que transporta. Torna-se «lua nova» quando é chamada a ser «lua cheia». Não deixa passar a luz quando se interpõe à frente da luz.
Precisamos não tanto de uma «Igreja sentada», mas de uma «Igreja de joelhos» e de uma «Igreja de pé». Precisamos de uma «Igreja de joelhos» para acolher o mistério de Deus e de uma «Igreja de pé» para caminhar ao lado dos homens.
- Até um ateu como André Comte-Sponville assinalou ser a espiritualidade o decisivo na nossa era. E um não crente como Albert Einstein tinha noção de que «a mais bela experiência que podemos fazer é a do misterioso». Karl Rahner percebeu que passava por aqui a sobrevivência do Cristianismo. Neste século XXI, o Cristianismo «será místico ou não será».
Ao mesmo tempo e porque Deus está voltado para o Homem (Jesus é, para nós, o Deus-Homem), a Igreja é chamada a envolver-se em tudo quanto é humano. Não apenas apoiando as vítimas da injustiça, mas questionando as causas da injustiça. É que o amor a Deus não sobrevive sem o amor ao próximo do mesmo modo que o amor ao próximo não vive sem o amor a Deus. Não é possível amar a Deus sem amar o próximo. E é inteiramente impossível amar o próximo sem amar a Deus. Só quem ama a Deus primeiro conseguirá amar a humanidade por inteiro. À semelhança de João Simão da Silva, mais conhecido como Marco Paulo, cada cristão também pode garantir: «Eu tenho dois amores». Os dois amores do cristão são o amor a Deus sobre todas as coisas e o amor ao próximo como a nós mesmos.
E. Por uma Igreja «intro» e «extro» vertida
- Por aqui se vê como, em Igreja, temo de nos descentrar constantemente para nos recentrar permanentemente: em Deus e no Homem. Temos de formar comunidades orantes e, simultaneamente, comunidades fraternas. Temos de constituir uma Igreja «intro-vertida» e, ao mesmo tempo, «extro-vertida»: voltada para Deus na oração e voltada para a Humanidade na acção.
Para isto, não são necessários especiais recursos organizativos. Até é bom que eles sejam mínimos para não nos desviarem do essencial. Basta que nos detenhamos no Evangelho. O programa de Jesus está aí. Basta que nos mobilizemos em torno de um mandamento: «Amai-vos uns aos outros como Eu vos amei» (cf. Jo 13, 34; 15, 12). É pela solidariedade, pela misericórdia e pela compaixão que a Igreja mostra o acolhimento do amor divino.
- Quanto mais a Igreja se voltar para fora, tanto melhor se revitalizará dentro. Quanto mais a Igreja se despojar, tanto melhor a Igreja se redescobrirá na sua beleza e na sua unidade. O pecado da divisão, tão duramente denunciado por Jesus, nasce de um enquistamento de cada um sobre si mesmo. «Se um reino estiver dividido, combatendo-se a si mesmo, não pode aguentar-se» (Mc 3, 24). Infelizmente, ainda há muitas divisões nas nossas comunidades. É sinal de que ainda estamos muito apegados a nós e pouco ligados a Cristo.
A divisão é fomentada pelo aprisionamento do «eu» e exacerbada pelo ódio dos outros. Como se não bastasse o egoísmo, temos de suportar, tantas vezes, o ódio. É tempo de parar. É tempo de recomeçar. Libertemo-nos de nós. Desapeguemo-nos da «tirania do eu». Entreguemo-nos a Deus. E habituemo-nos a tratar os outros como filhos Seus!