A. Jesus fala tão pouco num texto tão longo
- Acabamos de escutar um texto longo, que faz parte do Evangelho mais breve. O Evangelho de São Marcos tem 16 capítulos e 677 versículos. Dois desses 16 capítulos e 119 desses 677 versículos são proclamados neste dia.
E o que, sem dúvida, mais nos impressiona é que, num texto tão longo, Jesus fale tão pouco. Mas o silêncio de Jesus é bastante sonoro. É um silêncio que faz falar os gestos, que faz falar as atitudes, que faz falar o próprio sangue.
- Para nós, falar tornou-se sinónimo de produzir sons. Deixamos de ter sensibilidade para lidar com a palavra fora do som. Pelo que dificilmente nos habituaremos a comunicar em silêncio.
Acontece que, se repararmos bem palavra e silêncio não são incompatíveis. A palavra pode vir não apenas pelo som, mas também pelo silêncio. Daí que o silêncio seja necessário não somente para escutar, mas também para comunicar.
B. Porque é que Jesus grita?
- Acresce que comunicar em silêncio é (por assim dizer) a especialidade de Deus. São João da Cruz — com a argúcia que só os poetas e os místicos conseguem ter — assinalou que Deus proferiu uma única palavra e proferiu-a em silêncio.
A palavra que Deus proferiu — e continua a proferir — em silêncio é o Seu Filho (vf. Jo 1, 1). Foi esta Palavra que Se fez carne e habitou entre nós (cf. Jo 1, 14). Foi esta Palavra que, de Belém a Jerusalém — que da manjedoura até à Cruz — nos mostrou quem é Deus. É por isso que, já no século I, Santo Inácio de Antioquia nos exortava a que estivéssemos atentos ao que Deus faz — e diz — em silêncio.
- A esta luz, é espantoso — diria mesmo provocador — que algumas das poucas palavras de Jesus na Paixão saiam em forma de grito.
Diferentemente de São Lucas e São João, que apresentam a morte de Jesus como a serena consumação da Sua entrega ao Pai (cf. Lc 23, 46; Jo 19, 30), em São Marcos (como em São Mateus) Jesus morre de uma forma dramática: no meio de «grandes clamores e lágrimas», segundo a conhecida expressão da Epístola aos Hebreus (cf. 5, 7).
C. Jesus grita perante o silêncio de Deus
- É sabido que, não obstante a Sua condição divina (cf. Fil 2, 6), não foi fácil a Jesus aceitar a morte. No Getsémani, pediu ao Pai para que, se fosse possível, O afastasse daquela hora. No entanto, ressalvou de imediato que se fizesse a vontade do Pai; não a Sua (cf. Mc 14, 36).
Ou seja, Jesus não fugiu da Cruz, mas sofreu intensamente o que aconteceu na Cruz. São Marcos diz-nos que, antes de morrer, Jesus soltou dois grandes gritos (cf. Mc 15, 34. 37): um imediatamente antes e outro um pouco antes.
- Por tudo isto, se quisermos olhar para a Paixão de um modo global, temos de prestar atenção quer aos silêncios, quer aos gritos. Daí que uma «teologia do grito» seja tão necessária como uma «teologia do silêncio».
Sintomaticamente, o primeiro dos dois gritos de Jesus na Cruz é para questionar o silêncio: o silêncio de Deus. É voltado para Deus que Jesus grita: «Meu Deus, Meu Deus, porque Me abandonaste» (Mc 15, 34)? É aqui que tudo pára: param sobretudo as explicações. Se já é difícil perceber que o Filho de Deus possa sofrer, parece completamente incompreensível que Deus possa ter abandonado o Seu Filho.
D. O «porta-voz» de todos os abandonados
- Este grito de abandono utiliza palavras do Antigo Testamento, mais propriamente do Salmo 22. Aliás, é a única vez que Jesus chama Deus a Deus. O hábito de Jesus é tratar Deus por Pai e até por Paizinho («Abba»). É claro que, apesar de citar palavras do Antigo Testamento, Jesus está a sentir o que diz. Jesus sente-Se efectivamente abandonado. Neste sentido, Ele é o porta-voz de todos os abandonados — e oprimidos — do mundo.
Mas será que se quebrou mesmo a íntima união entre Jesus e Deus? Qual o significado, então, deste grito de abandono?
- É importante que olhemos para cada parte do Evangelho à luz da totalidade dos Evangelhos. Assim sendo, verificaremos que o mesmo Jesus que Se confessa abandonado por Deus é também aquele que, segundo São Lucas, morre a entregar-Se nas mãos de Deus: «Pai, nas Tuas mãos entrego o Meu Espirito» (Lc 23, 46).
Isto significa que Jesus mantém — até ao fim — a consciência de que é Filho e de que Deus é Seu Pai. Ele, que sempre vivera como Filho, morre como Filho.
E. No Filho, Deus sofre com todos os Seus filhos
- Daí que o abandono não traduza uma ausência, mas uma presença silenciosa. O que Deus nos quer dizer é que nós não estamos abandonados porque nos entregou o Seu próprio Filho (cf. Jo 3, 16). Se quem vê o Filho, vê o Pai (cf. Jo 14, 6) e se o Filho e o Pai são um só (cf. Jo 10, 30), então o Pai sofre o sofrimento do Seu Filho. A Sua presença é silenciosa, mas não é passiva. Trata-se, acima de tudo, de uma presença compassiva.
Como bem percebeu São Bernardo, «Deus é impassível, mas não é incompassível». Dizer que Deus é impassível significa afirmar que Deus não está sujeito a padecer. Dizer que Deus não é incompassível implica reconhecer que Deus não é incapaz de Se compadecer (cf. Heb 4, 15).
- No Filho, Deus sofre com todos nós, Seus filhos. Hans Urs von Balthasar nota que Deus até «sofre bem mais do que nós e não deixará de sofrer enquanto houver sofrimento no mundo». Deus pode tudo que até pode sofrer por nós.
Eis o que de mais comovente nos chega da Cruz: o amor apaixonado de Deus pelo homem. Eis o que nós mais devemos aprender na Cruz: se Deus ama assim a humanidade, como é que nós não havemos de amar cada ser humano? Arrumemos, pois, a nossa «casa». Se for caso disso, deitemos tudo fora. Fiquemos apenas — e sempre — com o amor. É o amor que nos há-de salvar!