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Domingo, 04 de Setembro de 2016

A. Em contramão com a «civilização do conforto»

  1. Nesta «civilização do conforto», em que nos encontramos, parece provocatório falar de renúncia. Regra geral, só renunciamos por imposição; nunca renunciamos por opção. Quem não faz tudo para impor a sua vontade e para seguir os seus impulsos? Em total contramão com esta tendência, Jesus propõe todo um outro tipo de vivência. Jesus não hesita em propor a renúncia e até a renúncia ao que nos é mais caro, mais querido: «Se alguém quiser seguir-Me, sem renunciar ao amor para com o pai, a mãe, a esposa, os filhos, os irmãos, as irmãs e até a própria vida, não pode ser Meu discípulo» (Lc 14, 26).

À primeira vista, Jesus parece «ciumento», indisposto a repartir a opção por Ele. Mas Jesus está a ser, como sempre foi, verdadeiro. A opção por Ele tem de ser integral e determinada, sem «mas», «talvez», «possivelmente» ou «vamos ver». Ser discípulo tem de ser em «full time», nunca em «part time». Mas será que é isso o que acontece na nossa vida?

 

  1. A Liturgia deste Domingo convida-nos a tomar consciência de quanto é exigente o caminho de Jesus. Seguir Jesus não é um caminho de facilidade, mas um caminho de renúncia e de doação da vida. Como é óbvio, quem opta por Cristo não é obrigado a odiar os seus familiares, mas deve perceber que seguir a Cristo está antes de todos e acima de tudo. Seguir a Cristo deve ter prioridade sobre as pessoas, sobre os nossos bens, sobre os nossos interesses e sobre as nossas ambições.

A Primeira Leitura lembra a todos aqueles que não são capazes de se decidir que só em Deus é possível encontrar a verdadeira felicidade e o autêntico sentido da vida. Pelo contrário, «os pensamentos dos homens são inseguros e os nossos conceitos são frágeis» (Sab 9, 14). Como bem percebeu Tony Blair, «ser humano é ser frágil». Só Deus fortalece a nossa fraqueza. Só Deus nos humaniza, só Deus nos plenitudiza. Só Deus torna o homem totalmente homem. Só em Deus somos capazes de ver, como São Paulo, que todos os homens têm a mesma dignidade. É por isso que o Apóstolo pede a Filémon que olhe para Onésimo não como escravo, mas como irmão «irmão muito querido» (Flm v.16).

 

B. Precisamos de uma «Evangelhoterapia»

 

3. Para que tudo isto se concretize na nossa vida, é mister passar por um profundo caminho de conversão, de purificação. A nossa simples natureza é insuficiente para um caminho tão exigente. Como dizia Zubiri, «viver é optar» e, como reconhecia Henri Bergson, «escolher é [também] renunciar».

Ser cristão significa pôr Cristo no centro de tudo. Jesus não admite meios-termos nem meias tintas. Ou aderimos inteiramente a Cristo ou não podemos apresentar-nos como cristãos. Piores que os não-cristãos são os «cristãos mornos»: não chegam a ser cristãos.

 

  1. O que mais nos impede de aderir totalmente a Cristo é o nosso «eu». O egoísmo é o maior adversário do Cristianismo. É por isso que outrora se valorizava muito a ascese.

Evágrio de Ponto advogava um método chamado «antirrético», pelo qual cada pensamento ou impulso contrários ao Evangelho eram superados com atitudes baseadas no Evangelho. Era uma espécie de «Evangelhoterapia», pela qual o cristão se ia vencendo a si mesmo até chegar à plena identificação com Jesus Cristo.

 

C. As exigências de Jesus

 

5. Quais são, então, as exigências fundamentais para seguir Jesus? Jesus coloca-nos três exigências, todas elas inseridas no tema da renúncia. A primeira exigência, talvez a mais incompreensível para a nossa sensibilidade, preceitua que se prefira Jesus à própria família (cf. Lc 14, 26).

A este propósito, Lucas põe na boca de Jesus uma expressão muito dura. Significando literalmente o verbo «miséô», poderíamos inferir que Jesus estava a propor que odiássemos o pai, a mãe e toda a família. Ora, isto chocaria frontalmente com o que o mesmo Jesus defende no mesmo Evangelho de São Lucas, quando recorda o dever de «honrar pai e mãe» (Lc 18, 20).

 

  1. Aqui, «odiar» não tem o sentido que lhe costumamos atribuir. Aqui, «odiar» significa sobretudo «preferir». De facto, de acordo com a maneira oriental de falar, «odiar» significa pôr algo em segundo lugar quando aparece um valor mais importante.

Ou seja, o que Jesus exige é que as relações familiares não nos impeçam de aderir ao Evangelho. Aliás, aderir ao Evangelho é a melhor maneira de fortalecer as relações com a própria família.

 

D. Quem não carrega com a Cruz não pode ser discípulo de Jesus

 

7. A segunda exigência implica a renúncia à própria vida (cf. Lc 14, 27). O discípulo de Jesus não pode fazer opções egoístas, colocando em primeiro lugar os seus interesses e aquilo que é melhor para ele. Ele é chamado a colocar a sua vida ao serviço do Evangelho e fazer da sua vida um dom de amor aos irmãos. Foi esse, de facto, o caminho de Jesus: o «caminho da Cruz».

É por isso que quem não carrega com a Cruz não pode ser discípulo de Jesus. Não adianta imaginar um «Cristianismo açucarado» já que o seu perfil está definitivamente traçado. Quem o traçou foi Jesus.

 

  1. A terceira exigência passa pela renúncia aos bens (cf. Lc 14, 33). Jesus sabe que os bens têm um grande poder de sedução. Facilmente são idolatrados. Facilmente ocupam o lugar central na vida das pessoas, tornando-se uma prioridade, escravizando o homem e levando-o a viver em função deles. Neste caso, que espaço fica para o Evangelho?

Acresce que dar prioridade aos bens leva a viver de forma egoísta, indiferente às necessidades dos outros. Aderir ao Evangelho implica viver o mandamento novo do amor e orientar a vida para que esta seja orientada para a partilha e doação.

 

E. O nosso alicerce é Jesus

 

9. Fica claro que ser cristão, sendo um caminho de felicidade, não é um caminho de facilidade. É talvez por isso que se trata de um caminho que nem todos aceitem seguir. Jesus deixa tudo muito claro. Ele quer instruir, não iludir.

As três exigências de Jesus podem resumir-se a duas. Jesus quer que renunciemos ao nosso «ter» e ao nosso «ser». O «ter» conduz, quase sempre, a um esvaziamento do «ser». E o «ser» a que somos chamados não é o nosso, é o «ser» de Cristo. Desde o Baptismo, estamos «cristificados». Não somos nós, é Cristo em nós (cf. Gál 2, 20). Daí que a nossa vida tenha de ser sempre uma «Cristovida».

 

  1. Olhemos, agora, brevemente, para as duas parábolas. A parábola do homem que, antes de construir uma torre, pensa se tem com que terminá-la (cf. Lc 14, 28-30) e a parábola do rei que, antes de partir para a guerra, pensa se pode opor-se a outro rei com forças superiores (cf. Lc 14, 31-32) convidam os candidatos a discípulos a tomar consciência da sua decisão em corresponder às implicações do Evangelho e em assumir, com inteira radicalidade, as respectivas exigências.

Escutemos, então, o que Jesus nos diz. Ele continua a atravessar-Se no nosso caminho como, há dois mil anos, Se atravessou no caminho das multidões (cf. Lc 14, 25). Só estando ancorados em Cristo é que estaremos em condições de cumprir o que nos é pedido e em fazer o que nos é solicitado. Como cantávamos no Salmo Responsorial, só Ele é o nosso refúgio. Sozinhos nada conseguimos. Sozinhos nada somos. A presunção só degenera em ilusão. O nosso alicerce é Jesus Cristo. Só n’Ele conseguiremos mudar a nossa vida e a vida do mundo.

publicado por Theosfera às 08:33

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