1. Depois de ouvir estes extensos — e intensos — 114 versículos, o que resta para dizer? Permito-me sublinhar apenas um contraste. Trata-se do contraste entre a agitação dos homens, a (dolorosa) serenidade do Filho e o (compassivo) silêncio do Pai.
Tal como sucede em Marcos e Mateus, também em Lucas Jesus grita antes de morrer. A diferença é que não grita duas vezes, mas uma única vez. Mas, ao contrário de Marcos e Mateus, o grito que Lucas nos apresenta não é um grito de abandono, mas um grito de confiança: «Pai, nas Tuas mãos entrego o Meu espírito» (Lc 23, 46).
- E se assim o disse, assim o fez: «Dito isto, expirou» (Lc 23, 46). E é por isso que, mais do que morrer, Jesus vive a morte. A fórmula verbal «exépneusen» significa, à letra, «expelir ar». Como sabemos, uma das palavras que os gregos usavam para descrever o ar era «pneuma», que se traduz habitualmente por «espírito».
Fixando-nos então em «exépneusen», depreendemos que Jesus «deixou sair o pneuma», ou seja, o «espírito». Era precisamente o que Ele tinha anunciado imediatamente antes: «Pai, nas Tuas mãos, entrego o Meu espírito». Diz que «vai entregar o espírito» e entrega mesmo o espírito.
- A «entrega do Espírito» não é necessariamente um indicador de morte. Até pode ser — e é-o neste caso — uma poderosa demonstração de vida e vitalidade. Haja em vista que, na Bíblia, o Espírito é sinónimo de vida, pelo que entregar o Espírito também pode equivaler a entregar a vida (cf. Jo 6, 63).
Acresce que o próprio Jesus tinha ressalvado que ninguém Lhe tirava a vida; era Ele que a dava (cf. Jo 10, 18). Por conseguinte, o que imediatamente decorre de dar o Espírito é dar a vida (cf. Jo 6, 63).
- É sintomático notar que a Igreja sempre acreditou ter nascido não «do lado morto», mas, como recorda o Vaticano II, do «lado adormecido» de Cristo. Curiosamente também Eva, a primeira mulher da humanidade, fora constituída a partir do lado (tselá) do primeiro homem adormecido (cf. Gén 2, 21-22).
Como recordou o Papa Pio XII foi «do coração ferido [não morto] do Redentor que nasceu a Igreja». O coração sinaliza o imenso amor «que moveu o nosso Salvador a celebrar o Seu místico matrimónio com a Igreja».
- E o Pai? Porque é que o Pai não fala? Porque é que o Pai não intervém? Porque é que o Pai não aparece? É um facto que o Pai Se mantém silencioso, mas não está ausente.
Se quem vê o Filho vê o Pai (cf. Jo 14, 6), então quem vê o sofrimento do Filho não pode deixar de entrever o sofrimento do Pai.
- Na Cruz, Deus não está ausente, mas em silêncio. Trata-se de um silêncio que não provém da indiferença, mas da compaixão. O silêncio de Deus na Cruz não é passivo, mas com-passivo.
Trata-se, portanto, de um silêncio operante pelo qual o Pai, ainda que não falando, está totalmente envolvido no sofrimento do Filho e de todos nós, Seus filhos.
- A presença silenciosa — mas não passiva — de Deus no sofrimento de Cristo é uma das maiores mensagens que se desprende da Cruz.
O Pai entrega o Filho (cf. Rom 8, 32) e o Filho entrega-Se por nós ao Pai (cf. Gál 2, 20) no Espírito que os une eternamente.
- Os primeiros teólogos cristãos não hesitaram na hora de envolver Deus no sofrimento. Santo Inácio de Antioquia falava abertamente do «sofrimento de Deus». São Justino, Santo Ireneu e Tertuliano referiam-se ao «Deus crucificado».
E, desafiando a concepção clássica da divindade, Orígenes ressalvava que «o próprio Pai não é impassível». O Pai também sofre o sofrimento do mundo e sofre sobretudo por permitir que o Filho sofra. Permitir que o Filho sofra é a paixão suprema do Pai.
- O sofrimento de Deus não é d’Ele; é assumido por Ele. Orígenes explica que o Seu padecer é, essencialmente, um compadecer. Deus sofre o sofrimento humano, pelo que a Sua paixão é uma com-paixão.
A natureza de Deus não é alterada e nem na Cruz o Filho perde a «condição divina» (Fil 2, 6). Em suma, Deus continua a ser impassível; o que Ele recusa é mostrar-Se incompassível.
- Ao sofrer connosco, Deus sofre verdadeiramente e até mais intensamente. Deus sofre bem mais do que nós; e não deixará de sofrer enquanto houver sofrimento no mundo. Ele sofre o nosso sofrimento. Ele sofre por nós sofrermos.
Nesta semana santa, olhando para a Cruz do Redentor, excitemos o nosso amor. Não causemos sofrimento a ninguém e partilhemos os sofrimentos que cada um tem. Quem ajuda a levar a Cruz, encontrará sempre Jesus!