1. Enquanto espelho e exemplo, Maria oferece à Igreja o Seu próprio rosto. Qual é a fisionomia deste rosto?
Em Maria encontramos uma Igreja totalmente descentrada (de si mesma) e plenamente recentrada (no divino e no humano); uma Igreja voltada, antes de mais e acima de tudo, para Deus; uma Igreja esvaziada de si e cheia de Jesus Cristo; uma Igreja tonificada pelo Espírito; uma Igreja feliz na fé; uma que se apaga voluntariamente para que Jesus possa brilhar.
Trata-se, por isso, de uma Igreja mais confidente que conferente; de uma Igreja despojada e humilde; de uma Igreja que sabe fazer silêncio para poder fermentar a Palavra; de uma Igreja que, acima do fazer, privilegia o estar; de uma Igreja que se habitua não só a rezar (falando com Deus), mas também a orar (escutando a voz de Deus).
Não admira que esta desponte como uma Igreja profeticamente inconformista (e saudavelmente inconformada); como uma Igreja distante do poder e próxima dos simples; como uma Igreja pobre e (preferencialmente) junto dos pobres; como uma Igreja que existe para servir e nunca para se servir; como uma Igreja disponível e jamais imparcial; como uma Igreja libertadora e misericordiosa; como uma Igreja materna e, nessa medida, tolerante.
Eis, em síntese, uma Igreja educadora (sobretudo) pelo testemunho; uma Igreja, ao mesmo tempo, discípula e seguidora; uma Igreja próxima (até) de quem está distante; enfim, uma Igreja existencialmente eucarística, que faz da entrega de Jesus Cristo, que sacramentalmente actualiza, um programa de vida e uma contínua proposta de sentido. É uma Igreja que, como Maria, aprende a conjugar mais o verbo dar do que o verbo receber!
2. A Igreja é chamada incessantemente a recompor o seu rosto em Maria. Neste sentido, não desvalorizará planos de acção nem conferências ou simpósios. Mas a prioridade será sempre a vivência de cada instante e o testemunho em cada momento.
Na mais ínfima parcela do krónos fará brilhar o luminoso esplendor do kairós. Não desistirá perante as dificuldades, mas procurará transformá-las em permanentes oportunidades.
Será uma Igreja humilde, que nunca reclamará privilégios. A sua voz só se fará ouvir para anunciar o Evangelho da esperança e para denunciar as injustiças que visam obscurecê-la.
Passará muitas horas de joelhos, à escuta. Não terá a preocupação de que se fale dela. O importante, para a Igreja, é que se faça o que Jesus diz (cf. Jo 2, 5), é que Jesus cresça, ainda que ela diminua (cf. Jo 3, 30).
Nesse sentido, terá muitos tempos de retiro e de deserto, imitando Maria no Sábado Santo, entre a recordação da morte e a expectativa da ressurreição. Também a vida da Igreja decorre entre a atenção dispensada à realidade e o empenho na sua transformação.
O Sábado Santo é uma espécie de entretanto entre a comemoração da morte e a celebração da vida. A Páscoa está, literalmente, em marcha. A passagem da morte para a vida faz-se no silêncio da espera. Nada há mais distante. Nada existe tão próximo. A morte é a negação da vida. A vida é a superação da morte. Há, aqui, uma realidade e um sentido, um significante e um significado.
Estamos no fundo? Mas é do fundo que tudo parte. A grande lição do Sábado Santo é que não há motivos para o derrotismo (próprio de Sexta-Feira Santa), mas também não há ainda razões para a euforia (aceitável em Domingo de Páscoa). O Sábado Santo é a grande metáfora da existência humana e do percurso eclesial. É preciso nunca deixar de acreditar, nunca desistir de trabalhar. Não há obstáculos intransponíveis.
Segundo Carlo Maria Martini, «entre o "já" e o "ainda não", devemos evitar absolutizar o hoje com atitudes de triunfalismo, ou, pelo contrário, de derrotismo. Não podemos deter-nos na escuridão de Sexta-Feira Santa, numa espécie de "cristianismo sem redenção"; mas também não devemos apressar a plena revelação da vitória da Páscoa em nós, que se realizará na segunda vinda do Filho do Homem. Somos convidados a viver como peregrinos na noite iluminada pela esperança da fé e acalentada pela autenticidade do amor».
Neste tempo, que decorre entre a escuridão mais densa e a aurora do dia de Páscoa, «Maria revive as grandes coordenadas da sua vida, coordenadas que resplandecem desde a Anunciação e que caracterizam a sua peregrinação na fé».
Os discípulos, figurando a Igreja nascente, «trazem em si a memória de tudo o que viveram com o Mestre. Trata-se, porém, de uma recordação carregada de nostalgia e fonte de tristeza, porque tudo por que tinham ansiado e que tinham esperado com Ele e por Ele parece irremediavelmente perdido. O Sábado Santo é vivido pelos discípulos no medo e no temor do pior, porque o futuro parece reservar para eles derrotas e humilhações crescentes. No sábado do tempo em que nos encontramos é necessário redescobrir a importância da espera; a ausência de esperança talvez seja a doença mortal das consciências, nesta época marcada pelo fim dos sonhos ideológicos e das aspirações a eles associadas».
3. A espera da esperança não pode ser confundida com passividade. Pelo contrário, ela proporciona a oportunidade decisiva para realizar o prioritário: a escuta.
A escuta, que nunca peca por excesso, faz-se, sem dúvida, a partir da Palavra revelada na Escritura e interpretada pelo Magistério. Mas faz-se também - e bastante - a partir do acolhimento do Espírito que balbucia no tempo (o zeitgeist) e, particularmente, na voz da consciência.
Tenhamos presente que, como avisa o próprio Jesus, Deus vê no segredo (cf. Mt 6, 1-6). E não é seguramente em vão que o Vaticano II chama à consciência o «santuário secreto» onde o Homem se encontra com Deus.
«A palavra de Deus, como sublinha Simone Weil, é também a palavra secreta». Daí que o pensamento crente deva estar «vazio, à espera, sem nada procurar, mas pronto a receber, na sua verdade nua, o objecto que o vai penetrar». No fundo, «os bens mais preciosos não devem ser procurados, mas esperados».
Uma pessoa não há-de ser estigmatizada por decisões que toma em consciência e, muitas vezes, no meio de condicionantes que chegam a ser dramáticas. Simone Weil confidencia que o uso das palavras «anathema sit» foi o motivo que a «impediu de franquear as portas da Igreja». É igualmente essa a razão para que muitos a abandonem ou se desencantem com ela. O legado de Jesus Cristo implica uma «solução harmoniosa entre indivíduos e comunidade». E esta harmonia passa, inevitavelmente, por um «justo equilíbrio de contrários».
A consciência é vista, desde o princípio, como uma espécie de vestígio seminal do divino em cada homem. Aliás, já há muitos séculos atrás, Pierre Bayle descrevia a consciência como «a voz e a lei de Deus». Pelo que «violar a consciência é, essencialmente, violar a lei de Deus». Não espanta, assim, que Joseph Ratzinger tenha sustentado, em 1968, que, «acima do Papa, está a própria consciência, à qual há que obedecer antes de mais, ainda que seja contra o que diz a autoridade eclesiástica».
João Paulo II viria a sufragar esta posição, em 1991, na mensagem para o Dia Mundial da Paz: «Nenhuma autoridade humana tem o direito de intervir na consciência seja de quem for». Neste sentido, «negar a uma pessoa plena liberdade de consciência ou tentar impor-lhe uma maneira particular de compreender a verdade vai contra o seu direito mais íntimo».
O primado da pessoa é o que deve prevalecer. A autoridade está ao serviço da pessoa. Não pode abafar a pessoa. A autoridade existe para que a consciência de cada um seja respeitada. Para que, no fundo, seja garantido que a autoridade maior é a consciência.
4. A Igreja é comunitária, mas com base na pessoa. Não despersonaliza quanto integra. Cada um deve, pois, ser acolhido e tratado como único. Maria mostra como o Salvador de toda a humanidade veio ao mundo por meio de uma única pessoa.
A Igreja deve dirigir-se a todos e tem de estar disponível para cada um. Em qualquer circunstância, ela há-de ser portadora de esperança. Não se trata de uma esperança como ilusão, mas da esperança como garantia. O seu fundamento está em Jesus Cristo e a sua imagem encontra-se em Maria.
O Concílio Vaticano II assinala que Maria «brilha como sinal de esperança segura e de consolação aos olhos do Povo de Deus peregrino». Ela posiciona-Se como uma luz no horizonte a orientar o sentido da nossa vida. Como refere Alejandro Martínez, Maria «transforma-se em incentivo para a dupla tarefa do cristão: santificação própria e ser testemunha de Cristo no meio dos homens».
Por aqui se vê como a fé não é alienante. O cristão tem os olhos na eternidade, mas não foge do tempo. Pelo contrário, é por causa da sua esperança na consumação eterna da sua existência que ele se empenha na transformação do mundo actual. É a certeza do futuro que estimula a intervenção no presente.
Deste modo, marianamente autenticado, a Igreja vai fazendo a trajectória do mistério pascal nas suas duas ocorrências fundamentais: crucifixão e ressurreição. Da cruz fazemos experiência palpável. Da ressurreição vamos fazendo experiência na esperança. Como dizia Sto. Agostinho, «nesta vida, realizamos o que está significado na crucifixão, enquanto afirmamos, pela fé e pela esperança, o que está significado no sepultamento e na ressurreição».
Se não houver mais nada para oferecer às pessoas, não deixemos de oferecer a esperança. A esperança não é tudo, mas é essencial para tudo.
É usual dizer-se que enquanto há vida, há esperança. Também se poderá afirmar que enquanto houver esperança, haverá sempre vida!