1. Ainda hoje muitos se interrogam como é que um profeta incómodo foi sendo transformado num chefe poderoso. E, concomitantemente, como é que uma mensagem centrada no serviço deu lugar a uma instituição fortemente organizada e a um sistema de poder.
O paradigma Jesus, por nós perdido e tantas vezes desperdiçado, está sinalizado na coroa de espinhos e sobretudo na cruz.
É o paradigma de uma Igreja que respeita os poderes, mas que está distante do poder e que não se concebe a si mesma como poder.
A Igreja recebe de Maria um perfil que a distancia do poder. O Magnificat, neste ponto, chega a ser, como refere Alejandro Martínez, «um cântico de rebeldia».
Com efeito, nele a serena Maria bendiz a Deus que «derruba os poderosos de seus tronos e exalta os humildes»(Lc 1, 52). Segundo Ela, Deus não é imparcial. Ele toma partido e não é pelo lado de cima.
Maria percebe inteiramente onde está Deus. Ela encontra-O nos subterrâneos da opressão a que o Seu povo estava sujeito. Ela também foi testemunha da violência que Roma exercia sobre a região.
Não envereda, porém, pela via da revolta armada e vingativa. À semelhança de Seu Filho Jesus, «denuncia o atropelo, protesta contra ele, mas sem ódio nem sentimentos de vingança. Pede a Deus que faça justiça salvando os que são oprimidos».
Em Maria, a Igreja aprende certamente a respeitar o poder, mas jamais se cola a qualquer tipo de poder. Até porque, infelizmente, nenhum poder humano se aproxima do género do poder de Deus, que é o poder do amor. Deus manifesta o Seu poder «para salvar o homem das tiranias que o escravizam».
2. É neste sentido que pode causar alguma estranheza a situação da instituição eclesiástica. Esta, segundo Paul Hoffmann, parece ter-se distanciado demasiado da mensagem de Jesus, «em que a utopia real do Reino de Deus como reino de bondade incondicional e também de liberdade foi vivida» e proposta.
Às vezes, subsiste a impressão de que, em vez de estar ao lado dos oprimidos, alguns optam por estar ao lado dos opressores. Ou, pelo menos, o seu silêncio leva a que não se demarquem suficientemente.
A proximidade com o poder acarreta um esmorecimento da mística e da profecia. As questões do poder afrouxam a espiritualidade e a intervenção social.
Como é sabido, o momento determinante é o século IV, com o fim das perseguições e a progressiva integração da Igreja no Império. Assistimos, a um tempo, à cristianização de Roma e à romanização do Cristianismo.
A Igreja passa não apenas a legitimar as decisões do poder político (mesmo as mais controversas, como a guerra e a pena de morte), mas organiza-se também internamente num sistema similar.
Só que este não é o caminho de Jesus. Para D. Manuel Martins, «a Igreja tem de viver sempre em tensão com o poder. Caso contrário, não cumpre o seu dever, porque tem um ideal de vida que não se pode conformar com nenhum programa de governo».
3. A memória viva (e vivificante) de Jesus há-de ser sempre a pedra angular e a instância crítica a que tudo há-de estar submetido.
É possível que nem o marxismo tivesse surgido se a memória de Jesus e de Maria encontrasse maior acolhimento dentro da Igreja. A este respeito, o testemunho de Martin Luther King é eloquente: «A grande tragédia é que o Cristianismo não percebeu que tinha em si a semente revolucionária. Não é preciso vir Karl Marx ensinar-nos a ser revolucionários. Eu não recebi a inspiração de Karl Marx; recebi-a de um homem chamado Jesus, um santo da Galileia».
É pela Igreja que vemos Jesus. É por Jesus que urge, cada vez mais, rever a Igreja. Para que se seja outra. Para que seja ela, Igreja de Jesus. Para toda a humanidade.
Uma Igreja despojada será, apenas ela, uma Igreja necessária. E apelativa. Uma Igreja fiel a Jesus não estabelece relações de poder, mas de serviço. A sua preocupação não é mandar, mas servir. Uma Igreja fiel a Jesus pugnará sempre pela justiça entre os homens. Uma Igreja fiel a Jesus não permite que alguém se considere superior ou que alguém seja considerado inferior.
4. Para um seguidor de Cristo, os outros não estão atrás nem em baixo. Os outros vivem ao lado e sobrevivem dentro de cada um.
Afinal, ainda não incorporamos totalmente o Deus de Jesus na nossa vida eclesial. Alguns passos têm sido dados. Mas subsiste um longo caminho a percorrer.