A história mais fácil é a que se faz a partir de cima. A história mais justa é que tem de ser feita a partir de baixo. E a história mais bela é a que se refaz a partir de dentro.
A história que melhor se conhece é a primeira, a que se faz a partir de cima, dos vencedores, dos dirigentes. Uma obra é conhecida pelo seu arquitecto, raramente pelos seus operários. Mas são estes que trabalham. Um exército é imortalizado pelo seu comandante, quase nunca pelos seus soldados. Mas são estes que combatem.
Recentemente, sobretudo com George Rudé e Eric Hobsbawn, começou a haver maior sensibilidade para a história a partir de baixo, da gente inominada. Mas há ainda um longo caminho a percorrer.
Até na Igreja e apesar da fundamental igualdade entre os membros do Povo de Deus, a atenção concentra-se em quem está à frente...
Acontece que a história a partir de dentro é que corre o risco de ficar na penumbra. Por um lado, percebe-se. Há quem opte por estar longe do palco. Mas, por outro lado, a nossa atenção também anda distraída, focada no palco.
Há pessoas que deixam rasto. Mas a sua profundidade colide em demasia com a nossa superficialidade.
Acontece que, por vezes, fica uma palavra ou sobram uns papéis. Sempre é uma pista que nos permite aceder a almas de um nível superior.
Uma das trajectórias mais interessantes do século XX foi, sem dúvida, a de Etty Hillesum. Viveu poucos anos. E porque nasceu judia, morreu em Auschwitz, antes dos 30 anos.
Teve um percurso atormentado em todos os capítulos. O seu encontro com Deus foi inesperado e nem o sofrimento a fez abalar.
Os místicos tornam-se sempre surpreendentes.
Etty Hillesum gostava de se ajoelhar e, deste modo, sentir a impotência de Deus.
Cultuava o silêncio para estar mais atenta ao que chega de fora e ao que brota de dentro.
Leitora dos clássicos, como Dostoievksy (que levou para o campo de concentração), costumava repetir uma máxima de Rilke: «A paciência é tudo».