Não sei se estou equivocado, mas quer-me parecer que existe algum incómodo diante da figura de D. Óscar Romero.
Faz, hoje, 31 anos que ele foi assassinado quando celebrava Missa e na sequência de intervenções desassombradas na defesa dos mais pobres de El Salvador.
Há formalidades que deverão ser cumpridas, mas avultam também sinais eloquentes que se impõem. D. Óscar não precisa de ser canonizado para ser venerado como santo.
E uma vez que o milagre tem que ver com o inesperado, haverá algo mais miraculoso que a coragem que ele mostrou diante do perigo?
Refira-se que D. Óscar Romero agiu em sentido contrário ao que era esperado. Ele foi colocado à frente da diocese de San Salvador com o objectivo de refrear as intervenções mais inflamadas de alguns padres.
Foi, entretanto, o assassinato do Padre Rutílio Grande que operou uma enorme viragem na alma e na acção do bispo. Ele mesmo tornou-se uma voz profética e muito inconformada diante do poder.
Para ele, mais importante que a ordem era a justiça. E acima da prudência encontrava-se a frontalidade.
Sabia dos riscos que corria. As ameaças não paravam. Só que, humilde, achava-se indigno da graça do martírio.
Além da hostilidade dos poderosos, sofreu com uma certa frieza de alguns colegas e superiores.
Desafiar a ordem (ainda que seja uma ordem injusta) nem sempre cai bem.
D. Óscar, de facto, não cumpriu o preceito da imparcialidade. Ele tomou partido. Não por partidos, obviamente. Mas pelos pobres, pelos sem voz, pelos sem terra, pelos sem esperança e pelos sem amor.
Óscar Romero é um dos maiores expoentes de uma Igreja samaritana, que faz sua a causa dos que são assaltados nas estradas da vida. Realçar o seu exemplo é uma forma de mobilizar quem o procure reproduzir.
Na década de 1980, foram muitos os sacerdotes que, na linha de D. Óscar, pagaram com o sangue a coragem de uma missão que nunca cedeu à demissão.
Um deles foi o Padre Ignacio Ellacuria, reitor da Universidade de El Salvador, morto, com mais alguns padres, em Novembro de 1989.
Note-se que o Padre Ellacuría deixou o conforto de uma carreira universitária na Espanha, donde era natural, para se entregar ao povo crucificado (como ele dizia) de El Salvador.
Já agora, este sacerdote foi o primeiro a fazer uma tese de doutoramento sobre Xavier Zubiri. De certa maneira, operacionalizou existencialmente o conceito de realidade do mestre.
Segundo a esposa do filósofo, Zubiri tentava moderar os impulsos de generosidade de Ellacuría, bastante envolvido com o povo que adoptara como seu.
Zubiri nunca ocultou a profunda admiração que nutria por este seu discípulo, visita assídua de sua casa.
Óscar Romero e Ignacio Ellacuría são ícones de uma Igreja que não receia arriscar e que não recua, ainda que pela frente esteja o perigo supremo: o da própria vida.
Em tempos de resignação, é importante olhar para o exemplo dos que nunca se conformam.
Não será este o perene milagre?