1. Na «hermenêutica da fé», que o Papa assume na apresentação do «Jesus real», o tema da verdade assume uma importância decisiva.
Recorde-se que este é um filão de tal modo recorrente na trajectória de Ratzinger que o seu lema episcopal foi a conhecida expressão «cooperadores da verdade» (3Jo 8).
O modo como, na recente obra sobre Jesus, aborda o diálogo com Pilatos merece, pois, atenta ponderação.
O pano de fundo é a actualidade. Para Bento XVI, a maioria, nos tempos que correm, continua a «sentir aversão» pela verdade.
Este será o «peirasmós» de sempre, a tentação de todos os tempos, que, hoje em dia, assumirá acrescida pertinência.
Não faltará, porém, quem questione. Como é possível falar de aversão pela verdade sem assentar, primeiro, num apuramento da verdade?
Como poderemos saber que há aversão pela verdade, se não existe consenso em torno do que é a verdade? De que falamos quando falamos de verdade?
O que é verdade para nós será verdade para outros? Será verdade para Jesus?
A fé surge emoldurada por um conjunto de verdades que professamos.
Coincidirão as verdades sobre Jesus com o que é a verdade para Jesus?
2. A esta luz, parece-me estranho o silêncio do Papa sobre o silêncio de Jesus ante a pergunta de Pilatos.
É, porém, nesse silêncio que se encontra a eloquência e a novidade da posição de Jesus.
À pergunta «o que é a verdade?» (Jo 18, 38), Jesus não responde com os lábios porque sempre respondera com a vida.
A verdade é mais para viver do que para dizer. É por isso que, para Jesus, quando se fala de verdade, fala-se sobretudo do testemunho.
Para quê responder com os lábios se, desde sempre, respondera com o Seu testemunho de vida (cf. Jo 18, 37)?
Qualquer palavra seria, por isso, uma redundância que poderia retirar a força expressiva do testemunho.
Por conseguinte, a mentira não consiste tanto na negação dos postulados que consideramos verdadeiros.
A mentira encontra-se, acima de tudo, na contradição entre aquilo que se diz e aquilo que se faz.
Nas discussões que travou com os Seus contemporâneos e no ensinamento que deixou aos Seus discípulos, Jesus apelou não tanto para as Suas palavras como para as Suas acções (cf. Jo 14, 11).
3. Pilatos e Jesus configuram, assim, duas formas de ver a verdade. Duas formas que, diga-se, estão permanentemente em confronto.
Pilatos simboliza a verdade obscurecida pelo poder. Jesus incorpora a verdade iluminada pelo testemunho.
A verdade condicionada pelo poder preocupa-se com a ordem. A verdade iluminada pelo testemunho desagua na justiça.
Bento XVI acha que Pilatos, ao condenar Jesus, quer assegurar a paz, sacrificando a justiça.
Com todo o respeito, não me parece ser o caso. Aliás, a maioria dos exegetas também não comunga desta visão.
Ratzinger, como se compreende, é tributário da concepção de Sto. Agostinho, para quem «a paz é a tranquilidade na ordem».
Foi, contudo, o Vaticano II que sublinhou ser a paz «obra da justiça».
O poder nunca foi grande amante da paz. Sacrifica tudo à ordem porque receia que a denúncia da injustiça provoque transtorno.
A verdade nunca se pode impor por meios coercivos. A verdade é para propor pela persuasão, pelo anúncio.
A verdade pilotada pelo poder tenta vencer por julgamentos, condenações e exclusões. Já a verdade suportada pelo testemunho procura convencer apenas (e sempre) pelo exemplo.
4. Aqui chegados, reacende-se o problema. O que prevalece, hoje, nas comunidades cristãs? A concepção de Pilatos ou a atitude de Jesus?
Não será que, mesmo em ambientes cristãos, a verdade ainda está muito limitada pela autoridade e pouco ancorada no testemunho?
Não será, por isso, que a tensão entre Pilatos e Jesus se mantém dentro da própria Igreja?
Será que já percebemos que o erro não está tanto na negação de uma afirmação como na contradição da existência?
Conseguiremos, a partir de um rico património de verdades, desembrulhar a verdade?
A coerência da vida é o maior (a bem dizer, o único) sufrágio da verdade.
Só há verdade quando a vida não desdiz o que a palavra diz.