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Segunda-feira, 21 de Março de 2011

 1. Na «hermenêutica da fé», que o Papa assume na apresentação do «Jesus real», o tema da verdade assume uma importância decisiva.

 

Recorde-se que este é um filão de tal modo recorrente na trajectória de Ratzinger que o seu lema episcopal foi a conhecida expressão «cooperadores da verdade» (3Jo 8).

 

O modo como, na recente obra sobre Jesus, aborda o diálogo com Pilatos merece, pois, atenta ponderação.

 

O pano de fundo é a actualidade. Para Bento XVI, a maioria, nos tempos que correm, continua a «sentir aversão» pela verdade.

 

Este será o «peirasmós» de sempre, a tentação de todos os tempos, que, hoje em dia, assumirá acrescida pertinência.

 

Não faltará, porém, quem questione. Como é possível falar de aversão pela verdade sem assentar, primeiro, num apuramento da verdade?

 

Como poderemos saber que há aversão pela verdade, se não existe consenso em torno do que é a verdade? De que falamos quando falamos de verdade?

 

O que é verdade para nós será verdade para outros? Será verdade para Jesus?

 

A fé surge emoldurada por um conjunto de verdades que professamos.

 

Coincidirão as verdades sobre Jesus com o que é a verdade para Jesus?

 

 

2. A esta luz, parece-me estranho o silêncio do Papa sobre o silêncio de Jesus ante a pergunta de Pilatos.

 

É, porém, nesse silêncio que se encontra a eloquência e a novidade da posição de Jesus.

 

À pergunta «o que é a verdade?» (Jo 18, 38), Jesus não responde com os lábios porque sempre respondera com a vida.

 

A verdade é mais para viver do que para dizer. É por isso que, para Jesus, quando se fala de verdade, fala-se sobretudo do testemunho.

 

Para quê responder com os lábios se, desde sempre, respondera com o Seu testemunho de vida (cf. Jo 18, 37)?

 

Qualquer palavra seria, por isso, uma redundância que poderia retirar a força expressiva do testemunho.

 

Por conseguinte, a mentira não consiste tanto na negação dos postulados que consideramos verdadeiros.

 

A mentira encontra-se, acima de tudo, na contradição entre aquilo que se diz e aquilo que se faz.

 

Nas discussões que travou com os Seus contemporâneos e no ensinamento que deixou aos Seus discípulos, Jesus apelou não tanto para as Suas palavras como para as Suas acções (cf. Jo 14, 11).

 

 

3. Pilatos e Jesus configuram, assim, duas formas de ver a verdade. Duas formas que, diga-se, estão permanentemente em confronto.

 

Pilatos simboliza a verdade obscurecida pelo poder. Jesus incorpora a verdade iluminada pelo testemunho.

 

A verdade condicionada pelo poder preocupa-se com a ordem. A verdade iluminada pelo testemunho desagua na justiça.

 

Bento XVI acha que Pilatos, ao condenar Jesus, quer assegurar a paz, sacrificando a justiça.

 

Com todo o respeito, não me parece ser o caso. Aliás, a maioria dos exegetas também não comunga desta visão.

 

Ratzinger, como se compreende, é tributário da concepção de Sto. Agostinho, para quem «a paz é a tranquilidade na ordem».

 

Foi, contudo, o Vaticano II que sublinhou ser a paz «obra da justiça».

 

O poder nunca foi grande amante da paz. Sacrifica tudo à ordem porque receia que a denúncia da injustiça provoque transtorno.

 

A verdade nunca se pode impor por meios coercivos. A verdade é para propor pela persuasão, pelo anúncio.

 

A verdade pilotada pelo poder tenta vencer por julgamentos, condenações e exclusões. Já a verdade suportada pelo testemunho procura convencer apenas (e sempre) pelo exemplo.

 

 

4. Aqui chegados, reacende-se o problema. O que prevalece, hoje, nas comunidades cristãs? A concepção de Pilatos ou a atitude de Jesus?

 

Não será que, mesmo em ambientes cristãos, a verdade ainda está muito limitada pela autoridade e pouco ancorada no testemunho?

 

Não será, por isso, que a tensão entre Pilatos e Jesus se mantém dentro da própria Igreja?

 

Será que já percebemos que o erro não está tanto na negação de uma afirmação como na contradição da existência?

 

Conseguiremos, a partir de um rico património de verdades, desembrulhar a verdade?

 

A coerência da vida é o maior (a bem dizer, o único) sufrágio da verdade.

 

Só há verdade quando a vida não desdiz o que a palavra diz.

publicado por Theosfera às 14:31

De Theosfera a 21 de Março de 2011 às 19:15
Fazer mal é sempre mal. Em nome da verdade, consegue ser ainda pior. Por entra em colisão com o objectivo pretendido. Quem mais longe está da verdade é quem se presume mais perto. A verdade é muito diferente da mera presunção.
Abraço amigo no Senhor.

De António a 21 de Março de 2011 às 19:47
Por certo, estimado Padre João António, fazer mal é sempre mal. Mas, em matéria de conflitos de valores, as questões éticas tornam-se, do meu ponto de vista, mais complexas e difíceis de discernir sobre o que seja fazer ou não mal. Recordo-me de um caso ocorrido em Itália, em relação a uma rapariga que se mantinha em estado de coma há muitos anos. O seu pai conseguiu que a justiça italiana autorizasse a desligar a máquina que mantinha artificalmente viva essa pessoa. Berlusconni tentou ainda fazer uma lei impeditiva da própria decisão judicial, certamente em nome de uma visão política absolutizante sobre o conceito de vida. A máquina acabou por ser desligada e a pessoa em questão eternamente adormeceu. Quem amava mais essa rapariga ? Berlusconni ou seu pai ?Abraço amigo...

De Theosfera a 21 de Março de 2011 às 20:14
Sem dúvida, bom Amigo. A verdade, muitas vezes, é mais oblíqua que linear. E jamais é passível de condenações. A situação a que alude é complexa, mas ninguém pode condenar ninguém. A verdade tem de ser compassiva, como nos vem da mais lídima tradição budista e jesuânica. Obrigado por mais estre contributo. Abraço amigo no Senhor.


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