Quando se usa a expressão caritas in veritate, percebe-se o alcance, mas adivinha-se também um certo perigo.
Não há dúvida de que, como diz o Papa, o amor «há-de ser compreendido, avaliado e praticado sob a luz da verdade».
Mas que verdade? A que eu encontro? A que surge a meus olhos como absoluta? E se o outro a contempla de modo diferente?
Recorde-se que, à luz da concepção grega (que radica na palavra aletheia), verdade é o que se deixa ver, é o que se desvela.
A verdade é, pois, predicada à realidade em si mesma e à percepção que cada um tem dela.
É por isso que, para mim, o outro pode não estar na verdade. Para o outro, posso ser eu a não estar na verdade.
Nesse caso, não vou amá-lo?
A expressão caritas in veritate pode sugerir, embora involuntariamente, uma certa anterioridade da verdade sobre o amor.
E o certo é que a história está cheia de crimes em nome da verdade. Por incrível que pareça, a verdade pretextou muitas vítimas.
Supostamente, quem não está na verdade merece castigo, penalização e não amor.
É curioso que na Bíblia (como, aliás, reconhece o Papa) aparece a expressão inversa: veritas in caritate (Ef 4, 15), a verdade no amor.
É, portanto, na escola do amor que se apreende a verdade.
Quando foi preciso dizer quem é Deus, S. João recorreu à linguagem do amor. Deus é amor (cf. 1Jo 4, 8.16).
A verdade acerca de Deus está no amor.
É por isso que a verdade que liberta é o amor, o amor que se dá sem medida.
O amor da verdade é inseparável da verdade do amor.
O amor da verdade não me inibe de propor ao outro aquilo em que acredito. Mas a verdade do amor impõe-me que eu respeite o outro mesmo que ele acredite no oposto.
Daí que Yves Congar tenha preconizado, como primeira condição da reforma da Igreja, a caritas, ou seja, «aquele amor desinteressado e realista que quer apenas o bem do outro».
Desligada do amor, a verdade apura-se ao modo de uma sentença judicial. Acaba por ser a autoridade a decidir por um dos lados.
Ora, a essência da verdade é o encontro potenciado pelo amor. Por vezes e como escreveu Wiliiam Carlos, «até a dissonância conduz à descoberta».
Num refrescante livro que acaba de aparecer entre nós, Timothy Radcliffe sublinha que «a atenção ao outro exige que eu aceite que ele se agarre firmemente a verdades que não se ajustam facilmente com aquilo em que eu acredito».
De resto, o Reino de Deus é espaçoso. Nele, há lugar para todos.
É, por conseguinte, o amor que verdadeia a própria verdade. Torna-a mais verdadeira, mais autêntica, mais universal.
O amor não permite que se exclua, que se persiga, que se condene.
O amor está sempre na verdade. E a verdade só pode estar no amor.
Quando tudo acabar, como anota Paulo, só o amor permanecerá.
O amor é a base de tudo. Inclusive da verdade.
Há sempre verdade no amor. Necessário é que não deixe de haver amor na procura e na partilha da verdade.
A verdade não se pode impor por meios coercivos. Só se pode partilhar através do amor, que dá e recebe, que fala e escuta, que encontra e não cessa de procurar.
Uma boa síntese prospectiva de tudo isto poderá ser a recomendação de Agostinho: «Vivei vidas cheias de bondade e mudareis os tempos».
O caminho não é tanto a repetição de verdades para os outros. O caminho terá de ser sobretudo a vivência da verdade junto de todos. Pela bondade, pelo amor.
Assim, quando usarmos a expressão caritas in veritate, não esqueçamos que ela postula, imperativamente, a correspondente (e matricial) veritas in caritate.
No amor está a verdade!