1. É com o coração despedaçado que, como toda a gente, olho para a tragédia da pedofilia na Igreja.
Como padre, tenho de perceber que o compromisso com a Verdade há-de estar antes de mais e acima de tudo.
Não foi Jesus, o fundador da Igreja e o perene fundamento do sacerdócio, que Se apresentou como sendo a Verdade (cf. Jo 14, 6)?
Não foi pela Verdade que Ele foi condenado? Não foi pela Verdade que Ele derramou o sangue e deu a vida? Será, então, lícito esconder a Verdade?
Será que já demos conta de que esconder não ajuda a regenerar o agressor e, pior, contribui para prolongar o sofrimento da vítima?
Admitamos não ser fácil lidar com situações de sumo embaraço e tumultuosa delicadeza.
As palavras não resolverão tudo, mas o silêncio curará alguma coisa?
Certos silêncios atiram-nos para o lado dos agressores e afastam-nos das suas vítimas. Ou seja, além da verdade, ferimos a justiça. Haverá algo mais contrário a Cristo?
2. E, no entanto, é mais frequente incomodarmo-nos com quem chama a atenção para um problema do que com quem provoca esse mesmo problema.
Já o Antigo Testamento reporta casos em que os que avisam (os profetas, por exemplo) são censurados, perseguidos ou, então, ignorados.
René Laurentin, num livro muito inquietante saído já nos anos 80 do século passado, advertia para o drama da pedofilia.
Conta que, por duas vezes, informou um determinado bispo. A resposta que recebeu terá sido a mesma: «Ignoramos»!
Como acontece a tantos outros, também ele teve razão antes do tempo e reconhecimento (só) depois do tempo.
É preciso dizer que a Igreja sempre lamentou estas tragédias. Mas a tendência era para encobrir.
Fazia-o certamente com o melhor propósito, mas o tempo provou que os resultados não foram satisfatórios.
Os autores das agressões mudavam de local. Só que a transferência das pessoas acarretava a transferência do problema que transportavam.
Hoje, temos presente que a tragédia não se resume aos actos. Ela envolve também o encobrimento dos mesmos.
3. Um problema assumido nem sempre é um problema solucionado. Mas um problema abafado é que nunca será um problema resolvido.
É certo que este não é um exclusivo da Igreja Católica. Esta até será a instituição que mais está a fazer no sentido de não branquear os actos e de assumir as suas responsabilidades.
Só que as responsabilidades da Igreja são maiores. As pessoas tendem (tendiam?) a confiar muito mais num padre do que noutra pessoa ou instituição.
Como reagir à quebra da confiança, o vínculo mais nobre que perfuma a convivência humana?
A Igreja tem feito uma revisão muito séria de factos do passado. Tem pedido perdão por aquilo que, ao longo dos tempos, não correu bem.
Mas é bom que a autocrítica não se circunscreva ao passado. O encontro com a Verdade (sobretudo com a verdade que dói e incomoda) não pode demorar tanto tempo.
Há quem morra sem uma palavra de conforto, sem um gesto de alento, sem um vislumbre de esperança.
4. É claro que todos temos soluções depois de os problemas acontecerem. Nem sempre na madrugada se sabe o que vai acontecer pela tarde.
É impossível detectar a personalidade de uma pessoa, em toda a sua extensão, no seu período de formação.
Mas há valores que despontam cedo e debilidades que emergem depressa. Penso, particularmente, no carácter ou na falta dele, na autenticidade ou na duplicidade.
Toda a construção depende, em muito, dos seus alicerces. Sem uma forte espiritualidade é muito difícil resistir, é muito fácil claudicar.
Todos temos, por isso, muito a aprender em matéria de verdade e de justiça. É fundamental não chegar tarde aos acontecimentos.
A gravidade de um acto não está em que ele seja conhecido. Está em que ele seja cometido.
É imperioso escutar quem nos adverte na altura própria. Mesmo que se torne (insuportavelmente) incómodo.
Mas não é esse o destino dos profetas?