1. Nestes tempos em que pouco se cala, ainda há coisas que nunca (ou raramente) se dizem.
Umas pertencem, pura e simplesmente, ao silêncio. Outras habitam na intimidade discreta de uma partilha. Mas muitas são o néctar que perfuma a convivência.
Haverá, porém, palavras que consigam traduzir o que sentimos, o que está alojado no mais fundo do nosso ser?
Quantas vezes dizemos a quem nos ajudou o quanto lhe estamos reconhecidos?
Aos nossos familiares ainda vamos permanecendo ligados. Mas em relação aos nossos professores facilmente nos afastamos.
Até parece que o que somos nada tem a ver com o que eles foram para nós, em nós, por nós, connosco.
2. A paternidade e a maternidade não se esgotam nos registos biológicos.
Pai e mãe são quantos nos franqueiam as portas da vida. São quantos nos abrem as janelas do futuro. São quantos, pelo conhecimento e pelo porte, vão colorindo as paisagens da nossa existência.
George Steiner compara a relação entre professor e aluno à relação entre o pai e a mãe e o filho. Para ele, a relação entre professor e aluno «é a realização de uma alegoria de amor desinteressado».
É mesmo assim. É missão do professor entrar na vida do aluno metendo nela a ciência e o saber.
Não é o que fazem a mãe e o pai? Tem de se estabelecer, por isso, uma relação de confiança, assente no respeito e estribada na mútua abertura.
3. Foi com estes sentimentos que regressei a Resende no passado dia 16 de Março.
Regressei só em pensamento, transportado pela lembrança e conduzido pela gratidão.
Foi nesse dia que soube que o senhor Prof. José Dias Gabriel tinha sido agraciado com o prémio carreira por toda uma vida dedicada ao ensino.
A imprensa assinalava-lhe a fundação da Escola Secundária D. Egas Moniz. Nunca lá estive. Foi na Escola Preparatória D. João de Castro que o conheci.
Corria o ano de 1976. Os seminaristas deixavam de ter aulas no Seminário, passando a frequentar o ensino público.
Ainda se ouviam os ecos vociferantes da Revolução de Abril. Eram tempos de contínuas alvoradas, em que até as tardes cinzentas pareciam manhãs pintadas de azul.
Naqueles dias, o sol dava a impressão de nunca se pôr, mesmo quando a chuva caía. Tudo era promessa. Tudo ressumava esperança.
Em tudo, palpitava o dealbar de um mundo novo. Até as pedras das calçadas pareciam sorrir ao ouvir as nossas confidências, ao coscuvilhar os nossos sonhos.
4. À distância de todos estes anos — já lá vão mais de trinta —, guardo uma comovida recordação dessa época.
O senhor professor Gabriel foi um dos artífices do nosso percurso. Primava pela clareza, pela vibração, pela rectidão.
Ele e outros professores transmitiam-nos conhecimentos que perduram e forneciam-nos valores que não passam.
Conviviam com os alunos vendo neles parceiros mais novos de um destino comum.
Eram mestres e sabiam ser amigos. Ao contrário do que se diz, não creio que um professor não possa ser amigo dos seus alunos.
Se a amizade é o melhor da vida, porque é que não há-de ser o melhor de uma escola? E, naquele tempo, a escola que frequentei era uma verdadeira escola de amizade.
Retenho, comovidamente, o clima de franqueza, o ambiente de solidariedade, a atmosfera de proximidade que a todos nos ligava.
Podíamos não ter nada para dizer, mas gostávamos de estar perto uns dos outros.
5. Na pessoa do senhor professor José Dias Gabriel, saúdo todos os professores e colegas que tive na Escola Preparatória de Resende.
Todos me marcaram. E alguns permanecem como das maiores referências da minha vida.
Tenho pena de nunca lhes ter dito o que sentia.
Mas todos sabem que, naqueles tempos, eu era gago profundo.
Dizer uma palavra era, para mim, um tormento. E que tormento! Mas aquilo que não dizia para fora, sentia cá dentro. Muito.
Espero ter tempo de verter, de viva voz, o meu reconhecimento a cada um deles. Antes que a tarde venha e o sol se ponha. Para sempre!
A todos, muito obrigado. Do fundo do meu coração!