Em Dezembro, temos o Natal a 25 e Santo Estêvão a 26. Num dia, festeja-se o nascimento. No dia seguinte, assinala-se uma morte. Como notou São Fulgêncio de Ruspas, a 25, «celebramos o nascimento do nosso Rei eterno; a 26, celebramos o martírio do Seu soldado».
Aparentemente, o contraste não pode ser maior. Mas só aparentemente. Na realidade, existe uma profunda — e muito subtil — ligação entre as duas celebrações. A proximidade entre o Natal e Santo Estêvão mostra, desde logo, que nascemos para morrer e morremos para viver.
Os antigos já entreviam a Cruz junto ao presépio: aquele Menino nasceu para ser mártir. E consideravam o dia da morte como o verdadeiro — e definitivo — dia do nascimento (dies natalis). Trata-se do nascimento para a vida eterna, para a vida sem fim.
Acresce que Estêvão foi o primeiro cristão a ser coroado — aliás, o seu nome significa precisamente coroa — com o martírio. Foi Jesus quem deu força a Estêvão para dar a vida por Ele. O Papa Francisco referiu que «Jesus transforma a morte dos que O amam em aurora de vida nova».
A Igreja, como reparou São Fulgêncio de Ruspas, sempre acreditou que o amor «que fez Cristo descer do Céu à Terra foi o mesmo que elevou Santo Estêvão da Terra ao Céu. O amor, que primeiro existia no Rei, resplandeceu a seguir no Seu soldado».
Estêvão era o primeiro dos sete colaboradores dos Apóstolos, conhecidos como diáconos (cf. Act 6, 5). Rapidamente se destacou pela sua dedicação e pela sua sabedoria (cf. Act 6, 8-10).
Tudo isto acarretou a hostilidade de alguns que, não tendo argumentos, passaram para os insultos e para a hostilidade contra Estêvão. Não olharam a meios para o eliminar. Foram mesmo ao ponto de subornar pessoas (cf. Act 6, 11), mobilizando testemunhas falsas (cf. Act 6, 13-14).
A defesa de Santo Estêvão enfureceu ainda mais os seus adversários (cf. Act 7, 2-53), que o condenaram à morte por apedrejamento (cf. Act 7, 58). Um jovem chamado Saulo aprovou esta condenação (cf. Act 6, 58). Mais tarde, ele próprio iria converter-se, tornando-se no grande apóstolo São Paulo (cf. Act 9, 5-8).
E foi assim que, como observou São Fulgêncio de Ruspas, «aonde Estêvão chegou primeiro, martirizado pelas pedras de Paulo, chegou depois Paulo, ajudado pelas orações de Estêvão». Santo Agostinho sinalizou até que, se não fosse Estêvão, não haveria Paulo: «Se Estêvão não orasse, a Igreja não teria Paulo» («si Stephanus non orasset, ecclesia Paulum non haberet»).
Há muitas semelhanças entre as circunstâncias do martírio de Estêvão e a crucifixão de Jesus. As últimas palavras são praticamente iguais. Segundo São Lucas, Jesus entrega-Se completamente a Deus: «Pai, nas Vossas mãos entrego o Meu Espírito» (Lc 23, 46). Segundo o mesmo São Lucas, Estêvão oferece-se totalmente a Jesus: «Senhor Jesus, recebe o meu espírito» (Act 7, 59).
Ambos, Jesus e Estêvão, pedem clemência para quem os matou. As palavras de Estêvão — «Senhor, não lhes imputes este pecado» (Act 7, 60) — parecem decalcadas na súplica de Jesus: «Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem» (Lc 23, 34).
Santo Estêvão chegou a ter dois dias de festa: a 26 de Dezembro[1] e a 3 de Agosto, o dia em que se comemorava a descoberta das suas relíquias.
Consta que, em 415, um sacerdote chamado Luciano soube, através de uma aparição de Gamaliel, onde estavam as relíquias de Santo Estêvão. Feitas as escavações, encontraram os restos mortais a 3 de Agosto daquele ano. A terra tremeu e um suave perfume inundou todo o local. Imediatamente, 73 doentes ficaram curados.
Os despojos foram colocados num relicário e transladados para a Igreja do Monte Sião. Aí permaneceram até 15 de Maio de 439, quando foram transferidas para uma Igreja erigida no lugar onde Estêvão tinha sido apedrejado.
Entretanto, um senador de Constantinopla foi enterrado ao seu lado. Quando a sua esposa regressou à terra natal, resolveu levar consigo o corpo do marido. Acontece que, por engano, ela levou o corpo do santo. Só no navio deu conta do equívoco. Daí que o corpo permanecesse em Constantinopla durante alguns anos.
Finalmente, foi sepultado na Basílica de São Lourenço Fora de Muros, em Roma, onde ainda hoje repousa.
A devoção a Santo Estêvão não tardou a espalhar-se por todo o mundo e depressa terá chegado a Portugal e à nossa região. A festa em honra do primeiro mártir terá sido usada para cristianizar a chamada «Festa dos Rapazes».
Esta festa decorria nas aldeias de Trás-os-Montes, integrada no ciclo de festividades do Solstício de Inverno, que decorre de 24 de Dezembro a 6 de Janeiro. Uma vez que estas festas eram dedicadas ao culto do Sol, a festa de Santo Estêvão servia para ajudar as pessoas a deixar o culto do Sol e a passar para o culto do verdadeiro Sol, que é Jesus Cristo.
Consta que um Bispo de Lamego, chamado D. Durando Lourenço, terá visto um clarão a brilhar neste monte. Esse clarão tê-lo-á levado a construir uma capela em honra do primeiro mártir, Santo Estêvão.
Curiosamente, na Espanha, dá-se uma explicação semelhante para o culto do primeiro apóstolo mártir, São Tiago. Um ermitão chamado Paio terá visto a luz uma estrela incidir sobre o local onde estaria sepultado o apóstolo. Daí que a localidade passasse a ter o nome de «Campus Stellae» (que significa «Campo da Estrela»), donde surgiu o topónimo Compostela.
A Capela em honra de Santo Estêvão foi inaugurada por D. Durando Lourenço, a 15 de Agosto de 1361.
O Cónego Fernão Martins ficava autorizado a colher esmolas em toda a Diocese para a conservação da Capela e respectivo culto.
Aos cónegos era pedido que ali passassem a ir em procissão duas vezes por ano: uma no dia de Santo Estêvão, 26 de Dezembro, e outra no dia da descoberta do seu corpo, a 3 de Agosto.
Mais tarde, porém, a primeira daquelas procissões do Cabido passou de 26 de Dezembro para o dia 02 de Janeiro, «o dia oitavo da festividade» do Santo pois este dia 26 de Dezembro começou a ser preenchido com «um grande mercado na devesa ou soutos que ficavam por detrás da Capela de Nossa Senhora dos Remédios».
Nessas procissões também deviam tomar parte os coreiros da Sé, os raçoeiros de Almacave e os frades de S. Francisco. Era a estes que incumbia a pregação. A Missa devia ser oferecida por alma de D. Durando, seus pais e demais obrigações. Para os encargos, o Bispo legava 12 libras anuais ao Cabido, quatro aos coreiros e 20 soldos a cada raçoeiro e frade.
Aliás, a devoção deste Bispo por Santo Estêvão era tão grande que há quem pense que ele morreu no dia da sua festa, ou seja, neste dia 26 de Dezembro de 1362.
Onde ficava exactamente a Capela de Santo Estêvão, também denominada Capela de Santo Estêvão do Campo? Pensa-se que ficava aqui, na zona da Capela-Mor do actual Santuário.
Também há quem pense que seria um pouco mais acima, no local onde desembocavam os caminhos pedestres de Penude e Arneirós. Aí existiram, em tempos, alguns pinheiros com cruzes gravadas nos seus troncos. Parece que era aqui que muitos romeiros se juntavam para, em procissão, seguirem para as festas de Santo Estêvão. A presença de tais cruzes terá constituído, para alguns, o indício de um antigo templo. Trata-se, porém, de uma hipótese sem grande consistência.
O mais certo é que a Capela de Santo Estêvão fosse mesmo aqui, na zona da Capela-Mor do Santuário. Tal Capela, entretanto, foi demolida a 06 de Novembro de 1564. Uma segunda Capela viria a ser inaugurada, no actual Largo dos Reis, a 03 de Agosto de 1565, dia da descoberta das relíquias do mártir. Como sabemos, essa segunda Capela de Santo Estêvão veio a tornar-se a primeira Capela de Nossa Senhora dos Remédios.
Segundo o inventário de 1867, a imagem de Santo Estevão que aqui se encontra é a mais antiga do Santuário e é aquela que D. Durando mandou fazer em 1361. É claro que ela não estaria como está agora, mas também sabemos que foi restaurada por diversas vezes. O mais importante restauro foi certamente o de 03 de Julho de 1857, pela mão do estucador portuense Bártolo Pires Zineu.
Presentemente, esta imagem, de madeira estofada, tem cerca de 75cm de altura, apresentando o Santo Estêvão revestido de alva, estola, manípulo e dalmática vermelha, com um livro na mão esquerda.
E o mais curioso é que, apesar da presença marcante de Nossa Senhora dos Remédios, o nome deste lugar é Monte de Santo Estêvão. Ninguém o conhece por Monte dos Fragões (a primeira designação deste sítio) nem por Monte dos Remédios (a mais recente proposta que fizeram para denominar este local).
É, pois, no Monte de Santo Estêvão que nos encontramos. E, hoje, é o mártir Santo Estêvão que celebramos. Com ele, entreguemo-nos por Jesus. E a nossa vida terá cada vez mais luz!