A. O que queriam os «profissionais da rasteira»?
- Armadilhas não são coisa de agora. Jesus pisou, frequentemente, terrenos armadilhados. Sucede que Ele desembaraçou-Se sempre dos «profissionais da rasteira», daqueles que gostam de fazer cair os outros nas suas armadilhas. Tendo feito calar os saduceus (cf. Mt 22, 34), é compreensível que os fariseus também quisessem experimentar Jesus, para ver se conseguiria fazer-lhes o mesmo. Sendo especialistas em leis, achavam que não lhes custaria muito arrastar Jesus para alguma resposta equívoca ou, pelo menos, imprecisa.
No entanto, a pergunta não parecia ser das mais difíceis: «Qual é o maior mandamento que há na Lei?» (Mt 22, 36). O Decálogo é muito claro e conciso. Sucede que a Lei (Thora) compreendia não só os Dez Mandamentos, mas tudo quanto está nos cinco primeiros livros da Bíblia: Génesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronómio. Foi a partir deles que os doutores da Lei chegaram a contabilizar 613 preceitos: 365 negativos, que estipulavam o que não se podia fazer, e 248 positivos, que apontavam o que se devia realizar. Uma coisa é escolher o maior entre dez e outra coisa (bem diferente e bem mais difícil) é seleccionar o mais importante no meio de 613.
- Suspeito, porém, que pode ter havido um outro motivo para esta rasteira. Além da óbvia dificuldade em seleccionar o preceito mais importante no meio de 613 preceitos (todos eles) importantes, é possível que alguém achasse que, para Jesus, o amor ao próximo estava acima do próprio amor a Deus. Apesar de Jesus tratar Deus por Pai — o que muito irritava os «profissionais da rasteira» —, Ele amava tanto as pessoas que alguns poderiam ter dúvidas acerca da Sua ortodoxia.
Será que Jesus iria ser apanhado em falso? É muito fácil ver onde estava a rasteira. Se Jesus dissesse que o mandamento mais importante era o amor ao próximo, imediatamente O acusariam de heresia. Nada pode estar antes — nem acima — de Deus.
B. Dois mandamentos em «pacote»
- Só que Jesus desmontou, com genial mestria, toda esta armadilha. Ou seja, não foi arrastado pelos «profissionais da rasteira». Jesus não deixou subsistir qualquer dúvida de que o amor a Deus está acima de tudo. Mas Jesus fez mais: colocou o amor ao próximo em estreitíssima ligação com o amor a Deus. Foi como se dissesse que é impossível amar a Deus não amando o próximo.
É assim que Jesus desarma, completa e brilhantemente, quem se preparava para lhe montar uma armadilha, à partida complicada. Na verdade, Jesus surpreende de tal modo o auditório que não somente indica com destreza o primeiro mandamento («o amor a Deus») como aponta, logo a seguir, o segundo («o amor ao próximo»). É como se os dois mandamentos só pudessem ser apresentados — e vividos — em «pacote». Isto é, só consegue amar a Deus quem se dispuser a amar o próximo.
- É espantoso verificar como a acção contida neste duplo mandamento é o amor. Ou seja, o que Jesus espera de nós — para com Deus e para com o próximo — é o mesmo, é o amor. Não é o conhecimento, não é sequer o trabalho; é o amor. No fundo, o amor é a lei; no fundo, a lei é o amor. Que temos feito nós desta lei? Que estamos nós dispostos a fazer desta lei?
Se repararmos, o amor foi a lei que Jesus nos deixou pois foi a lei que Jesus sempre viveu. Trata-se de uma lei que se encontra esculpida no Mandamento Novo: «Amai-vos uns aos outros como Eu vos amei» (Jo 13, 34). Só que a lentidão com que nós, cristãos, vivemos essa lei é exasperante. Nos começos, notava-se um grande entusiasmo à volta desta lei. Tertuliano dá-nos conta de que os outros, olhando para os cristãos, exclamavam: «Vede como eles se amam!» Ou seja, «vede como eles fazem o que dizem»; «vede como eles cumprem a sua lei».
C. A lei do amor consegue mais que o amor da lei
- Se a lei do amor fosse mais observada, as outras leis quase poderiam ser dispensadas. Já dizia Disraeli: «Quando os homens são puros, as leis são desnecessárias; quando são corruptos, as leis são inúteis». Com efeito, um homem honesto não precisa da lei. Já um homem desonesto nem com a lei melhora.
Tudo isto mostra que obtemos mais com a lei do amor do que com o amor da lei. O mero amor da lei esquece, quase sempre, que a lei é um instrumento, não uma finalidade. A lei existe para proteger as pessoas, nunca podendo servir de pretexto para destruir pessoas. Importa ter presente que, como lembrou Luther King, «tudo o que Hitler fez na Alemanha foi legal». Arrepia, mas é verdade: há sempre vidas que vão sendo degoladas à luz da lei, na escuridão de certas leis.
- Jesus não veio revogar as leis, mas aperfeiçoar a Lei (cf. Mt 5, 17). E o critério de Jesus para aperfeiçoar a Lei foi sempre o amor. O amor deve ser vivido junto dos que pensam como nós e não deve esquecido junto dos que pensam diferente de nós.
Parafraseando Pedro Laín Entralgo, diria que é preciso ser «consensuante» mesmo com quem se mostra «discrepante». Assim, o crente amará os que merecem ser amados e não deixará de amar os que, não merecendo, também precisam de ser amados.
D. É impossível amar a Deus não amando o próximo
- É sob este pano de fundo que Jesus faz sabiamente rebentar a armadilha que Lhe prepararam: «Qual é o maior mandamento que há na Lei?» (Mt 22, 36). Jesus começa por responder citando a própria Lei, mais concretamente o Livro do Deuteronómio 6, 5: «Amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todas as tuas forças».
Acontece que Jesus vai mais longe. Diz não apenas qual é o primeiro mandamento, mas aponta logo o segundo, qualificando-o como semelhante ao primeiro: «Amarás o próximo como a ti mesmo». Aqui, cita uma outra passagem da Lei, consignada no Livro do Levítico 19, 18.
- Se este segundo mandamento é semelhante ao primeiro, podemos concluir que ele não é apenas segundo, pois faz parte do primeiro. Sendo assim, o amor a Deus é realizado no amor ao próximo. É impossível amar a Deus não amando o próximo. Só amando o próximo mostraremos que amamos a Deus.
Aliás, já São João perguntava: «Quem não ama o irmão que vê, como pode amar a Deus que não vê?» (1Jo 4, 20). Por isso — prossegue o mesmo apóstolo — «quem ama a Deus, ame também o seu irmão» (1Jo 4, 21).
E. Sem amor, não há nada; nem sequer há fé
- A ligação entre o amor a Deus e o amor ao próximo é tão estreita que São Gregório Magno entreviu aqui uma razão simbólica para Jesus mandar os discípulos em missão dois a dois. Mandou-os dois a dois porque «dois são os mandamentos, a saber, o amor a Deus e o amor ao próximo». No amor está tudo: está a Lei e estão os Profetas (cf. Mt 22, 40), isto é, está toda a Sagrada Escritura.
Por aqui se vê como Jesus, na resposta que dá, vai muito mais além da pergunta que Lhe tinha sido feita. Ele deixa bem claro que é toda a Bíblia que está perfumada pelo amor: pelo amor a Deus e pelo amor ao próximo. A qualidade do nosso amor a Deus mede-se pela intensidade do nosso amor ao próximo. Se não há amor, não há nada, nem sequer há fé.
- É por isso que quem mais sabe a Lei não é quem mais a conhece, mas quem melhor a vive. É preciso viver o amor a partir da nascente, a partir de Deus. E Deus, como nos diz a Primeira Leitura, tem um amor de predilecção pelos mais necessitados: os pobres, os órfãos, as viúvas, os estrangeiros, isto é, todos os que passam privações (cf. Ex 22, 20-26). Também São Paulo dá testemunho do amor divino ao pôr à frente dos seus interesses os interesses dos outros (cf. 1Tes 1, 5).
Afinal e como garante Jesus, «há mais alegria em dar do que em receber» (Act 20, 35). Até porque quando damos, somos presenteados com a alegria de quem recebe. Nunca recebemos tanto como quando damos tudo. Nunca recebemos tanto como quando nos damos totalmente!