A. Tudo começa na estrada
- Onde conhecemos Jesus, hoje? Onde podemos reconhecer Jesus em cada hoje? «Ao partir do pão»(Lc 24, 35). Na verdade, foi ao partir do pão que Jesus Se deu a conhecer há dois mil anos. É ao partir do pão que Jesus Se continua a dar a conhecer hoje. É este, por conseguinte, o mistério da Igreja e o mistério da fé da Igreja que testemunhamos em cada Eucaristia: «Anunciamos, Senhor, a Vossa morte, proclamamos a Vossa Ressurreição». E o Senhor, morto e ressuscitado, continua a vir, como veio naquele tempo e como há-de vir no fim dos tempos.
É por isso que não pode haver Igreja sem Eucaristia nem cristãos sem Domingo. É para a Eucaristia que caminha a missão e é da Eucaristia que nasce a missão. A missão consiste, fundamentalmente, em ir do caminho para a mesa e em voltar da mesa para o caminho. O mesmo Jesus que nos manda para a missão (cf. Mt 28, 16-20) também nos manda partir o pão em Sua memória (cf. 1Cor 11, 24).
- Não é em vão, aliás, que o fim da Missa consiste num convite para a Missão. O «ide» do celebrante não é uma despedida, mas um envio. De resto, já o «ide» de Jesus (cf. Mt 28, 19) era um envio, não uma despedida. Ele teve o cuidado de assegurar a Sua presença no meio dos discípulos até ao fim dos tempos (cf. Mt 28, 20). O que envia está sempre no meio dos Seus enviados.
A esta luz, o episódio dos discípulos de Emaús é um precioso tratado de pastoral que se pode sintetizar da seguinte maneira: tudo começa na estrada, tudo se revela em casa e tudo regressa ao caminho. Acabamos de ouvir como estes discípulos «contaram o que tinha acontecido no caminho e como Jesus Se lhes deu a conhecer ao partir do pão»(Lc 24, 35).
B. Jesus em Emaús
3. De facto, a missão tem início na estrada: na estrada de Emaús e nas estradas da vida. É aí, nas estradas, que ocorre o encontro (cf. Lc 24, 13-27). A missão prossegue em casa. É aí que o velado se desvela e o que era desconhecido se torna reconhecido (cf. Lc 24, 28-32). E é assim que a missão regressa a todos os caminhos para reentrar em todas as vidas. É aí que anunciamos Aquele que encontramos e reconhecemos (cf. Lc 24, 33-35).
É possível que, no início, encontremos nas estradas muitos como aqueles dois a caminho de Emaús: entristecidos, amedrontados (cf. Lc 24, 17). Não só para esses, mas sobretudo para esses, a missão é alento, alimento e remédio para vencer o desalento.
- Temos de fazer como Jesus. Primeiro, sair. Depois, entrar. E, de novo, voltar a sair. Hoje, porventura mais do que nunca, necessitamos de uma Igreja em saída, de uma Igreja em viagem, de uma Igreja em peregrinação por todos os lugares e por todas as vidas. É na viagem da vida que sentimos necessidade de uma Igreja que convide, de uma Igreja que acolha e, como corolário, de uma Igreja que envie e se sinta enviada.
Os discípulos de Emaús são, portanto, um retrato de nós mesmos. Como eles, também nós somos seres abatidos, caminhando pela estrada, a caminho de casa, no ocaso do dia. Também as nossas expectativas parecem esvaziadas e as esperanças caídas.
C. Aquele que caminha sempre connosco
5. Só que nas estradas da vida surgem muitas surpresas. É nestas estradas que surge o Jesus que nós, à primeira, não reconhecemos nem acolhemos. Jesus, que é o caminho (cf. Jo 14, 6), nunca deixa de Se aproximar de nós e de caminhar connosco (cf. Lc 24, 15). Jesus é o Deus próximo e o Deus peregrino. Ele é o nosso caminho e a luz que guia os nossos passos em todos os caminhos. É Ele que toma a iniciativa de vir ao nosso encontro.
Jesus caminha sempre connosco: não apenas por alguns momentos, mas durante toda a vida. O problema é que os nossos olhos estão como os olhos dos discípulos de Emaús. Tantas vezes, não reconhecemos Aquele que até somos capazes de conhecer. Conhecemos Jesus em Si, mas nem sempre O reconhecemos quando Ele vem até nós. É que Jesus vem de uma forma desconcertante. Jesus mete conversa nos nossos caminhos na pessoa dos pobres, dos pequenos e dos simples. Tudo o que fazemos a eles é o que fazemos a Ele (cf. Mt 25, 40). Ninguém diga, pois, que não vê Jesus, que não encontra Jesus. Ele está sempre a vir. Em cada pessoa, está a pessoa de Jesus.
- Estejamos atentos, já que, quando menos esperamos, surge o Jesus irreconhecido, o Jesus que quase nunca reconhecemos. É Ele que nos faz arder o coração (cf. Lc. 24, 32). É Ele que nos devolve ao caminho e nos recoloca na missão. Sem Jesus, a missão não tem sentido, é esforço vazio. Podemos conhecer as coisas, mas não o seu verdadeiro significado. Os discípulos de Emaús sabiam o que tinha acontecido nos últimos dias (cf. Lc 24, 18), mas só Jesus revela o Seu autêntico — e definitivo — alcance (cf. Lc 24, 25-27). Até o convite para entrar em casa é — subtilmente — provocado por Jesus. Com efeito, Jesus faz menção de continuar a caminhar (cf. Lc 24, 28) como que a suscitar o convite: «Fica connosco»(Lc 24, 29).
Esta, no fundo, é a vontade de Jesus: ficar connosco. Até porque, sem Jesus, vem a noite e a escuridão (cf. Lc 24, 29). Só Jesus é luz, só Jesus acende a luz para que volte a amanhecer um novo dia na nossa vida. Quando Jesus entra na nossa vida, tudo é diferente, tudo é novo, tudo é claro. Os olhos abrem-se e o coração arde (cf. Lc 24, 31-32). É Jesus que abre os nossos olhos, é Jesus que faz arder o nosso coração.
D. É preciso meter as mãos nas feridas
7. Os discípulos, apesar da noite, voltam de Emaús para Jerusalém (cf. Lc 24, 33). Não são os 12 quilómetros que os inibem. Quem tem os olhos abertos e um coração a arder é capaz de enfrentar qualquer obstáculo. Quando a missão acontece, o próprio Jesus (re)aparece. Naquela noite, em Jerusalém, com os discípulos regressados de Emaús, Jesus apresenta-Se de novo no meio da comunidade com o dom da paz (cf. Lc 24, 36).
Entre o espanto e o medo, chegaram a confundir Jesus com um espírito (cf. Lc 24, 37). Hoje em dia, também entre o espanto e o medo, não falta quem confunda alguns espíritos com Jesus. Mas Jesus desfaz todos os medos, pelo que, como cantava Sta. Teresa, não há razão para estarmos perturbados. Jesus pede aos discípulos que olhem para Ele e O toquem (cf. Lc 24, 39). Pede que fixem a atenção nas Suas mãos e nos Seus pés, que contêm as marcas da paixão e da morte.
- A Ressurreição não é a mera sobrevivência da «causa de Jesus». É Ele próprio que está vivo, transformado. A Ressurreição não é uma ilusão, mas uma transformação. Jesus como que nos diz que este é o momento de tocar nas Suas feridas, nas Suas feridas espalhadas em tantas feridas. A Ressurreição não é para quem evita as feridas, mas para quem mete as mãos em todas as feridas.
Jesus ressuscitado não está ausente nem sequer distante, longe do mundo em que os discípulos continuam a caminhar. Jesus continua, pelo tempo fora, a sentar-Se à mesa com os discípulos, a estabelecer laços de familiaridade e de comunhão com eles, a partilhar os seus sonhos, as suas lutas, as suas esperanças, as suas dificuldades, os seus sofrimentos. Naquela noite, Jesus pede «alguma coisa para comer»(lc 24, 41). Em cada dia, é Jesus quem Se nos dá a comer: é Ele o nosso alimento.
E. Até ao último entardecer, nenhum dia se pode perder
9. É na refeição que Jesus ressuscitado revela aos discípulos o sentido profundo das Escrituras. A Escritura não só encontra em Jesus o seu cumprimento como também o seu intérprete. É à volta de Jesus ressuscitado que a Igreja se deve reunir para escutar a Palavra que sustenta e para comer o Pão que alimenta. É preciso estar atento e disponível: atento para acolher e disponível para anunciar. Os discípulos, alimentados pela Palavra, recebem de Jesus a missão de dar testemunho diante de «todas as nações»(Lc 24, 47).
Nós estamos no mundo para anunciar a morte e a ressurreição de Jesus. Tal como os discípulos da primeira hora, também nós somos chamados a ser testemunhas em todas as horas (cf. Lc 24, 48): a ser testemunhas dos acontecimentos de Jesus e a ser testemunhas da pessoa de Jesus.
- A finalidade da missão é pregar o «arrependimento» e o «perdão dos pecados» (cf. Lc 24, 47): em toda a parte e a toda a gente. Eis a síntese da nossa missão: propor uma transformação da vida, uma transformação da vida de cada pessoa e uma transformação da vida do mundo. Ninguém pense que não precisa de se transformar. Ninguém pense que já está totalmente transformado. Que ninguém se acomode nem se aquiete. A missão é para incomodar e para, sadiamente, inquietar. Só no fim é que podemos descansar.
Como refere D. António Couto, em Emaús há uma igreja com um belo e significativo poema, que reza assim: «Todos os dias/ Te encontramos/ no caminho./ Mas muitos reconhecer-Te-ão/ apenas/ quando/ repartires connosco/ o Teu pão./ Quem sabe?/ Talvez/ no último entardecer». Vamos, então, sair de novo em missão. Nenhum dia se pode perder até que chegue esse «último entardecer»!