A. Um combate sem fim
- Olhando para a nossa vida e — ainda mais — para o nosso mundo, parece que assistimos a um combate sem tréguas entre a severidade e a compaixão, entre a intolerância e a clemência, entre o juízo e a misericórdia. E se já é desolador assistir a este combate, muito mais aflitivo é conhecer o seu habitual desfecho.
De facto, o que neste mundo parece triunfar é a severidade e não a compaixão, a intolerância e não a clemência, o juízo e a não a misericórdia. Para nosso mal, não parece haver grande futuro para o bem.
- Ainda bem, porém, que Deus não pensa assim e que Deus não age assim. Para Deus, só não haverá misericórdia para quem não usar de misericórdia (cf. Tgo 2, 13). Para Deus, só não haverá misericórdia para quem não procurar a misericórdia. No fundo, para Deus, só não haverá misericórdia para quem recusar a misericórdia.
É que, para Deus, a misericórdia triunfa sempre e triunfa sobre tudo. Até sobre o juízo a misericórdia triunfa (cf. Tgo 2, 13). Para Deus, a misericórdia é mais forte que o juízo. Para Deus, a misericórdia é o critério para tudo, inclusivamente para o juízo. O próprio juízo de Deus é alimentado pela misericórdia. O próprio juízo de Deus é cheio de misericórdia.
B. Quem nunca falha?
3. O episódio que o Evangelho deste Domingo nos apresenta é um confronto entre a mera justiça e a misericórdia. Trata-se de um combate entre uma justiça sem misericórdia e uma justiça habitada pela misericórdia.
É preciso ter presente que Jesus não é contra a Lei, nem Se apresenta como um sem-Lei. Só que Jesus vê mais fundo e chega mais longe. Para Jesus, a Lei, sendo importante, não é um absoluto. E, afinal, quem pode garantir que cumpre sempre a Lei? Quem pode garantir que cumpre integralmente todas as leis?
- O que Jesus questiona, com suma pertinência, é a presunção dos que se julgam em condições de denunciar quem viola a Lei. Quem nunca falha? Quem nunca erra? Por conseguinte, quem tem autoridade para apontar o dedo acusador? O próprio Jesus, no Sermão da Montanha, já tinha verberado a atitude dos que olham para o argueiro que cobre a vista dos outros sem reparar na trave que encobre a sua (cf. Mt 7, 4).
Assim sendo, que cada um comece por limpar os seus olhos (cf. Mt 7, 5) e só depois estará em condições para ver o eventual cisco que está sobre os olhos dos outros. Nesse caso, até poderá acontecer que chegue à conclusão de que o cisco que parecia estar sobre os olhos dos outros estava, sim, sobre os seus próprios olhos.
C. O fogo começa a arder em quem o ateia
5. Muitas vezes, não é a vida dos outros que não está limpa. Muitas vezes, são os nossos olhos que estão sujos. Um dedo pronto para acusar esconde, quase sempre, uma vida que deixa muito a desejar. Habitualmente, uma vida suja procura sujar a vida dos outros. O sujo não descansa enquanto não suja. Frequentemente, o que se pretende não é acabar com o mal, é acabar com os outros de quem se suspeita mal.
É por isso que batemos nos outros com a verdade e, ainda mais, com a própria mentira. Há quem, além de não ter misericórdia, também não tenha escrúpulos. A delação dá, quase sempre, cobertura à corrupção.
- Honra seja feita a estes delatores porque não se encolheram sob o anonimato. Deram a cara quando denunciaram esta mulher. Foram impiedosos, mas ao menos foram frontais. Pior, muito pior é a conduta dos que repetidamente se encobrem sob o manto do anonimato e nem sequer dão oportunidade para que os (por eles) visados se possam defender.
Há quem diga que «onde há fumo, há fogo». É preciso, contudo, ver de onde vem o fogo. O fogo começa a arder em quem o ateia. Antes de arder na terra, o fogo começa a arder em quem incendeia a terra. Às vezes, o fogo não está na vida dos acusados, mas na vida de quem acusa. O mecanismo da projecção leva a que alguns atribuam a outros aquilo que só eles são capazes de fazer. Muito cuidado, pois, com o que se diz: com que se diz em privado e com o que diz em público.
D. Todos eram pecadores, mas só uma pecadora se mostrou arrependida
7. A honra de uma pessoa é sagrada, pelo que a difamação e a calúnia são atentados muito graves. Falemos com as pessoas e evitemos falar das pessoas. Quando houver motivo, falemos às pessoas das suas falhas e não falemos das falhas das pessoas.
Se repararmos, não foi apenas esta mulher que era adúltera (cf. Jo 8, 3). Os que a acusavam não eram menos adúlteros. Esta mulher adulterou os seus deveres de esposa, mas os seus acusadores adulteraram o sentido da justiça. No fundo, o que eles pretendiam era usar a Lei — e a mulher que infringiu a Lei — para enrascar Jesus, para montar uma cilada a Jesus. No seu entendimento, Jesus iria sair-Se sempre mal deste debate. Se não reconhecesse o mal praticado pela mulher, diriam que Jesus não respeitava a Lei. Se mandasse liminarmente cumprir a Lei, alegariam que, afinal, Jesus não era tão misericordioso como parecia.
- Acontece que Jesus não fez o que aqueles homens esperavam: nem passou por cima do mal que a pessoa tinha cometido nem passou por cima da pessoa que tinha cometido o mal. Quando Jesus diz à mulher que não a condenava, não diz que ela tinha procedido bem. Pelo contrário, deixa bem claro que ela tinha procedido mal. Por isso, apela: «Não voltes a pecar» (Jo 8, 11). Isto significa que Jesus reconhece que aquela mulher tinha pecado. O que Jesus não admite é que alguém se sinta com autoridade para condenar o pecador. O que nós somos chamados a confessar é o nosso pecado, não o pecado dos outros.
A denúncia pode ser importante, mas a delação é sempre injustificada. A delação nunca conduz à conversão. A delação só conduz à desconfiança, à perversão. Neste episódio, não havia ninguém que não tivesse pecado. Quando Jesus convidou os que não tinham pecado a atirar a primeira pedra, todos se retiraram (cf. Jo 8, 7-9). Afinal, todos eram pecadores. Era bom, por isso, que aqueles que apontam os pecados dos outros se retirassem também. E se convertessem. Foi o que faltou a estes homens: converter-se
E. Deus está à nossa espera, como a Primavera
9. Depois de Jesus acabar de escrever — diga-se que é a única vez em que Jesus escreveu alguma coisa — (cf. Jo 8, 8), notou que só a mulher estava à sua frente. Afinal, só ela estava disponível para receber a misericórdia. Já os que a acusaram — e que, no fundo, também reconheceram ser pecadores — recusaram-se a receber a misericórdia que Jesus também tinha para lhes oferecer. Hoje em dia, continua a haver muita gente a dizer que não peca. Pudera. Como passam a vida a reparar nas falhas dos outros, nem tempo têm para reparar nas suas próprias fraquezas. Só que, deste modo, perdem sucessivas oportunidades de mudar, de melhorar.
Por conseguinte, sejamos indulgentes para com os outros e exigentes para connosco. E não nos esqueçamos de começar por nós a mudança que gostaríamos de ver à volta de nós. A melhor maneira de contribuir para a mudança dos outros é mudando-nos a nós mesmos.
- Não espanta que alguns manuscritos antigos do Evangelho de S. João tenham omitido este episódio. Afinal, é sumamente espantoso que Deus seja assim, maravilhoso. De facto, Deus é maravilhoso na Sua misericórdia e também na maneira como nos convence de que todos precisamos da Sua misericórdia. Não tenhamos medo de nos ajoelhar diante de Deus. Não tenhamos medo de implorar a Sua misericórdia e de pedir o Seu perdão. O que Jesus diz à pecadora diz também a cada um de nós, pecadores: «Eu não te condeno. Vai e, doravante, não tornes a pecar» (Jo 8, 11). Jesus não nos condena. Jesus faz tudo para que ninguém se condene. Que o nosso coração beba sempre do Seu perdão.
Não esqueçamos jamais que o primeiro cristão a entrar no céu foi um ladrão (cf. Lc 23, 43). Ninguém está excluído da proposta. Ninguém se deve sentir demitido de uma resposta. A salvação não é para quem nunca falha, até porque todos nós falhamos. A salvação é para quem está disposto a sempre recomeçar mesmo depois de muito falhar. Deus está à nossa espera, como o está a Primavera. A Sua misericórdia está sempre a vir para que na nossa vida possa florir!