A. Deus é imoderadamente misericordioso
- Deus é teimoso, santamente teimoso. Ele nunca desiste de nós, mesmo quando nós desistimos d’Ele. Deus está sempre a vir ao nosso encontro. Está sempre a bater à nossa porta (cf. Ap 3, 20), mesmo quando encontra a nossa porta fechada.
De facto, Deus mostra que põe a misericórdia acima de tudo. Podemos, por isso, concluir que, quanto à misericórdia, Deus é profundamente imoderado. Deus é imoderadamente misericordioso e misericordiosamente imoderado. Os Seus olhos estão sempre voltados nós. Quanto mais nós estamos afastados d'Ele, tanto mais perto Ele está de nós.
- É sabido que muita coisa se pode dizer de Deus e que muita coisa se tem dito acerca de Deus. Até o silêncio muito diz sobre Ele. Só que, às vezes, no afã de tanto dizer o que Ele é, podemos tropeçar no que Ele não é, no que Ele jamais quer ser.
Olhando, entretanto, para tanta coisa dita e não dita, para tanta coisa dizível e indizível, o que é que de melhor se poderá dizer de Deus? São Tomás de Aquino, com a sabedoria da sua santidade e com a santidade da sua sabedoria, não hesitava: «A misericórdia é o que de melhor podemos dizer de Deus».
B. A misericórdia é a sílaba tónica de Deus
3. Acerca de Deus, a Bíblia pode ser vista como uma longa palavra com 73 sílabas, tantas quantos são os livros que a compõem. Dessas 73 sílabas, 46 são soletradas no Antigo Testamento e 27 são entoadas no Novo Testamento. Em relação à imagem de Deus, muitas dessas sílabas serão completamente átonas: quase O desfiguram. Basta pensar no «Terror de Isaac», como Deus chega a ser apresentado numa passagem do Génesis (31, 42).
E é assim que, entre desfiguramentos e aproximações, vamos gaguejando, sílaba a sílaba, até chegar a S. Lucas, sobretudo ao formoso capítulo 15 do seu Evangelho. Aqui encontramos verdadeiramente a sílaba tónica de Deus. Aqui vemos claramente quem é Deus e como é Deus.
- O capítulo 15 do Evangelho de S. Lucas descreve o mesmo que S. João peremptoriamente afirma: «Deus é amor»(1Jo 4, 8.16). Deus é amor para todos e diria que é ainda mais amor para os que andam perdidos. É por isso que Jesus retrata Deus no homem que se alegra por reencontrar a ovelha perdida (cf. Lc 15, 4-7), a dracma perdida (cf. Lc 15, 8-10) e o filho perdido (Cf. Lc 15, 11-24)
Dir-se-ia que Deus Se perde pelos que andam perdidos. A misericórdia é assim, é ter o coração voltado para a miséria, é ter o coração voltado para os que se encontram na miséria.
C. A festa do reencontro após o desencontro
5. O coração de Deus tem esta maneira de funcionar. Trata-se, portanto, de um coração literalmente compassivo. Trata-se de um coração que sofre o nosso sofrimento. Deus nunca é a-pático; Deus é sempre em-pático e sim-pático. Deus sofre em nós, sofre connosco e sofre por nós. Não há amor maior. Haverá sequer amor igual?
Deus não castiga, embora avise. Mas Deus nunca condena. Deus abraça e Deus festeja. Deus não é um polícia a escrutinar os nossos erros. Deus é o Pai que Se alegra com o nosso regresso. A maior festa não é quando se dá o encontro. A maior festa é quando ocorre o reencontro após o desencontro.
- Sendo assim, porque é que continua a ser tão difícil falar correctamente de Deus? Porque é que, acerca de Deus, continuamos a carregar mais nas sílabas átonas do que nesta magnífica sílaba tónica? Porque é que, ainda hoje, continua a prevalecer a linguagem do castigo sobre a prática da bondade, da compaixão e do amor?
Bem notou o Papa Bento XVI que, «depois de Jesus nos ter falado do Pai misericordioso, as coisas já não são como dantes». A partir de agora «conhecemos Deus: Ele é o nosso Pai que por amor nos criou livres e dotados de consciência que sofre se nos perdemos e que faz festa quando voltamos».
D. A ilusão de ser feliz longe do Pai
- O nosso mal é quando pensamos que a nossa felicidade e a nossa realização estão no afastamento do Pai. Foi o que aconteceu ao filho mais novo desta parábola: deixou a casa do Pai e foi para longe (cf. Lc 15, 13). Mas, atenção, não foi apenas este filho que se afastou. O filho mais velho, no fundo, também estava longe, mesmo parecendo perto. Ele estava longe do Pai e do irmão. O seu coração estava distante, estava obtuso, estava fechado (cf. Lc 15, 28). Também por nós passa a ilusão do filho mais novo e também por nós pode passar a tentação do filho mais velho.
Por um lado, pensamos que somos felizes longe de Deus. E começamos a viver como se Deus não contasse. Acontece que nada corre bem quando nos afastamos de Deus. Como assinalou genialmente Sto. Agostinho, fomos criados para Deus. Por isso, andamos inquietos enquanto não voltamos para Deus. Mas, por outro lado, também podemos pensar que já não precisamos de mudar, de nos converter. A tentação do filho mais velho é presumir que já possui o Pai, que o Pai é só dele. Não o Pai meu também é Pai teu: é Pai nosso. Deus está sempre perto de nós, mas o nosso egoísmo nem sempre nos deixa estar perto de Deus.
- É claro que quando estamos com Deus também temos necessidades e também enfrentamos adversidades. Só que, quando estamos com Deus, sentimos sempre a Sua presença reconfortante e a Sua mão protectora. O mesmo não sucede quando estamos longe de Deus. Nessa altura, ocorre o que ocorreu ao filho que se afastou do Pai. Quando as provações vieram, não teve quem o ajudasse. Ninguém lhe dava nada (cf. Lc 15, 16). Restou-lhe guardar porcos, mas sem permissão para comer sequer o que os porcos comiam (cf. Lc 15, 15-16).
No entanto, as portas da Casa do Pai permaneciam abertas. As portas de Deus nunca se fecham e o lugar de cada filho nunca é ocupado por outro. Deus está sempre disponível para o reencontro. Deus perde-Se de amor pelos Seus filhos perdidos. Deus corre para nós para Se lançar ao nosso pescoço e para nos cobrir de beijos (cf. Lc 15, 20). Não são necessárias muitas palavras até porque Deus conhece antecipadamente tudo o que dizemos e tudo o que fazemos (cf. Lc 15, 21).
E. A festa que Deus faz quando regressamos
- É preciso ser Deus para se amar tanto o homem. Nem nós nos amamos tanto como Deus nos ama. Mas é indispensável procurar este amor que Deus nos quer dar. Se o filho perdido não fosse ao encontro do Pai, como é que poderia receber os Seus beijos? Como é que poderia receber a Sua misericórdia? É isto o que parece faltar, hoje em dia. Deus tem muita misericórdia para dar. Mas será que nós temos vontade de a receber? Se não vamos recebê-la, ela fica em Deus, mas não chega até nós. A misericórdia de Deus tem, na Igreja, o nome de Sacramento do Perdão. O beijo de Deus chega até nós através da Confissão.
É urgente, por conseguinte, reconhecer, como este filho, que estamos perdidos. E que, longe de Deus, ninguém nos dá nada. Longe de Deus, é só ilusão, inquietação e perturbação. Não tenhamos medo de voltar para Deus. Não tenhamos qualquer receio de reencontrar Deus. Deus tem tudo preparado para a festa. Vamos deixar Deus de mão estendida? Vamos consentir que Deus tenha tudo preparado sem que compareçamos?
- A misericórdia é oferecida. Mas só nos poderá ser dada se por nós for procurada. Estamos dispostos a procurar a misericórdia que Deus nos quer dar? No nosso tempo, fala-se muito de misericórdia, mas não se procura muito a misericórdia e, o que é pior, celebra-se pouco a misericórdia. A misericórdia é uma palavra que muito se ouve, mas uma realidade que pouco se vê. O mais sintomático é que existe uma grande oferta de misericórdia por parte de Deus e uma reduzida procura de misericórdia por parte de nós.
Não esqueçamos, porém, que a misericórdia, é o que há de mais revolucionário. Na Sua misericórdia, Deus não nos deixa como estamos, mas abre-nos sempre ao novo, ao diferente, ao melhor. Sejamos tão ousados na procura da misericórdia como Deus é generoso na oferta da misericórdia. Uma coisa é certa. Sem misericórdia, não temos solução, sem misericórdia, não teremos salvação («extra misericordiam, nulla salus»). Se não a formos receber, como é que Deus no-la poderá oferecer? Nunca hesitemos, pois, em procurar a misericórdia que Deus sempre nos quer dar!