A. Há muito bem no mundo
- Tenho uma notícia muito boa para vós, neste Domingo. É que, afinal e ao contrário do que se diz, existe muito bem neste mundo. Existe muito bem no mundo e em cada pessoa que há no mundo. Eu sei que não parece. O bem é continuamente silenciado, mas isso não significa que esteja inactivo. O bem vai fazendo o seu caminho no interior das pessoas. O importante é que não o bloqueemos nem torpedeemos.
Faço-me, pois, portador desta bela notícia, em contracorrente com a publicidade que muitos teimam em fazer ao mal e à maldade. O mal existe e a maldade alastra. Mas nada podem contra o bem. É que — esta é a segunda parte da notícia que hoje vos trago — o bem vem de Deus.
- É S. Tiago quem no-lo garante na Segunda Leitura da Eucaristia deste 22º Domingo do Tempo Comum: «Tudo o que de bom nos é dado […] desce do Pai»(Tgo 1, 17). Assim sendo, salta à vista que o nosso problema é, na prática, andarmos longe de Deus. Quem está em Deus está com o bem que é Deus.
O Apóstolo aponta-nos, por isso, o caminho a seguir. Trata-se de acolher docilmente a Palavra de Deus (cf. Tgo 1, 21). É esta Palavra que fecunda a nossa vida como fecundou a vida fiel de Maria Santíssima. Só acolhendo a Palavra de Deus, conseguiremos ir mais além de nós mesmos. É preciso, pois, cumprir a Palavra. Não basta escutá-la (cf. Tgo 1, 22). A Palavra não se dirige apenas aos nossos ouvidos. A Palavra dirige-se a toda a nossa vida.
B. O que mais agrada a Deus
3. A Palavra não pode entrar por um ouvido para sair pelo outro. A Palavra que entra pelos ouvidos almeja transformar a nossa existência. É a isto que se chama conversão, mudança. Esta conversão e esta mudança traduzem-se em gestos concretos nos quais S. Tiago tipifica a «religião pura e sem mancha»(Tgo 1, 17). De facto, o que mais agrada a Deus é «visitar os órfãos e as viúvas» e «conservar-se limpo de toda a corrupção do mundo»(Tgo 1, 27).
A vontade de Deus consiste, portanto, em fazer o bem ao nosso semelhante e em não cedermos ao assédio da maldade que nos ameaça. É preciso perceber que nenhum bem vem do mal. Só o bem faz bem.
- No fundo, é esta a lei maior, a lei suprema, a que todas as leis devem estar sujeitas. Jesus debate-Se com alguns dos Seus contemporâneos que eram muito ciosos das leis até nas suas minudências mais pormenorizadas. Jesus não é obviamente contra as leis. O que Jesus quer é que o cuidado com estas leis não impeça a atenção que é devida à lei maior e à lei suprema: a prática do bem.
De facto, há leis que asfixiam a liberdade das pessoas e há leis que promovem a liberdade das pessoas. Há leis que sufocam e há leis que libertam. A fé não é uma asfixia da liberdade, mas um transbordamento de liberdade. «Foi para a liberdade que Cristo nos libertou»(Gál 5, 1).
C. Quando o exterior distorce o interior
5. As leis são necessárias, mas a fé tem ir mais além da lei. Na linha de Jesus, temos de ter em conta, sobretudo, os três m's em que Ele insistiu: no m da mensagem (Reino de Deus), no m do mandamento (amor a Deus e ao próximo) e no m da missão (levar o Evangelho a todo o mundo).
Os judeus estavam muito apegados às leis, mas pouco atentos à mudança de vida. O principal, para eles, eram as acções exteriores. A aparência contava mais que a essência. Jesus não Se revê nesta conduta e lamenta: «Este povo honra-Me com os lábios, mas o seu coração está longe de Mim»(Mc 7, 6).
- Estamos numa época em que o aparato exterior quase não deixa ver o que se passa no interior. É claro que a vida é feita de interior e exterior. Mas o importante é que o exterior seja o espelho do interior. Infelizmente, nem sempre isso acontece. Muitas vezes, o exterior é uma negação, — uma distorção, um disfarce ou uma dissimulação — em relação ao que ocorre no interior.
Cuidamos muito do exterior e parece que descuidamos completamente o interior. No tempo de Jesus, a preocupação parecia ser «a lavagem dos copos, dos jarros e das vasilhas de cobre»(Mc 7, 4). No nosso tempo, a prioridade parecem ser os foguetes, as músicas, as marchas e as diversões. Nada disto, em si mesmo, é mal. Mas tudo isto é pouco. Acresce que tudo isto é supostamente realizado em honra da Virgem Maria e dos Santos. Mas que preocupação existe em aprender efectivamente com o exemplo deixado pela Virgem Maria e pelos Santos?
D. Que lugar para Cristo nas festas cristãs?
7. Os nossos lábios não parecem andar muito longe de Deus. Mas será que o nosso coração está possuído por Deus? Que lugar há para Cristo em tantas festas que se dizem cristãs? Que lugar há para Maria e para os Santos nas romarias que, em princípio, lhes são dedicadas?
Às vezes, dá a impressão de que a Virgem Maria e os Santos são meros pretexto para a festa, quando deviam ser o motivo da festa. Se eles fossem o verdadeiro motivo da festa, o centro da festa seria a Eucaristia. Foi, na verdade, a Eucaristia que fermentou no seio de Maria e transformou a vida dos Santos. Uma festa genuinamente cristã pensaria mais nos pobres e nos que sofrem. Uma festa genuinamente cristã seria, por isso, menos gastadora e mais solidária. Ainda temos muito a aprender, muito a crescer.
- Os antigos procuraram cristianizar algumas festas pagãs. Não deixemos que, hoje, se repaganizem as festas cristãs. Grande deve ser a festa de alguns dias. Maior há-de ser a festa de todos os dias. É certo que, por natureza, a festa pertence ao excepcional, ao que foge à cadência do quotidiano. Mas não seria apaixonante excepcionalizar o quotidiano? Ou seja, não nos deveríamos empenhar todos em levar para cada dia o desafio de transformação da nossa vida?
Não façamos da festa um pretexto para degradar a natureza humana, obra de Deus. Não afoguemos o nosso corpo em álcool. Não nos embriaguemos com vinho; embriaguemo-nos de fé, de esperança e de amor.
E. Abandonamos o interior do país e, ainda mais, o interior das pessoas
9. A festa não é para esquecer a vida, mas para nos reabastecer para a vida. A essência da festa está no encontro, no sorriso, no abraço. A festa será tanto mais bela, quanto mais nela nos abrirmos ao Deus da festa, ao Deus que faz festa quanto nos abraça. Bela é a festa da conversão. Bela é a festa quando é total, quando não deixa o interior de fora. Habitualmente, queixamo-nos ao ver o interior abandonado. Mas só lamentamos o abandono do interior do país. E que achamos do abandono do interior da pessoa? Não será que abandonamos, tantas vezes, o nosso interior e o interior dos outros?
Maria é, toda Ela, um acontecimento de interioridade. O Seu exterior fiel é um espelho do Seu interior atento. Foi no Seu interior que encarnou o Filho de Deus. O interior de Maria é o primeiro sacrário da história. É por isso que importa olhar para Maria e sobretudo olhar com Maria. O olhar de Maria não prende. É no olhar de Maria que se aprende a seguir Jesus.
- Jesus quer que nos transformemos a partir do fundo, a partir de dentro, a partir do nosso interior. É por isso que, estritamente, um cristão não é de direita, não é de esquerda nem é do centro. Genuinamente, um cristão é do fundo. Jesus é Deus que vem até ao fundo de nós. É por isso que Ele nos ensina a não nos preocuparmos prioritariamente com o nosso exterior: «Não há nada fora do homem que, ao entrar nele, o possa tornar impuro»(Mc 7, 18). Do interior do homem é que «saem os pensamentos perversos, as imoralidades, os roubos, os assassínios, os adultérios, a cobiça, as más acções, a má fé, a devassidão, o orgulho e a loucura»(Mc 7, 21-22). Por conseguinte, é pelo interior que temos de começar a conversão. Que adianta um exterior bem apresentado se o interior permanece descuidado?
Jesus não quer só um culto externo, feito de coisas repetidas apenas por hábito e, muitas vezes, sem sentido (cf. Mc 7, 7). Jesus quer que a oração dos nossos lábios seja a expressão da oração da nossa vida. Rezemos com os lábios, sim. Mas nunca nos esqueçamos de rezar, acima de tudo, com a nossa vida: com a nossa vida inteira, com a nossa vida lisa, com a nossa vida (sempre) limpa!