A. Deus também é peregrino do homem
- Deus vem. Deus fala. Deus permanece. Vem, fala e permanece desde o princípio. Deus, em Si mesmo, é um mistério de presença, de comunicação e de encontro. É certo que esta clareza nem sempre anula toda a obscuridade. Todos nós passamos longamente pelas «noites de espírito» de S. João da Cruz e de Samuel. Nem sempre estamos em nós quando Deus vem até nós. Ou talvez estejamos demasiado em nós quando Ele vem até nós.
Muito se tem falado, nos últimos tempos, no suposto silêncio de Deus. São, de facto, muitas as vezes em que Deus parece (sublinho: parece) estar em silêncio. Mas será Deus que não fala ou não seremos nós que temos dificuldade em escutar? Deus será mesmo silencioso ou não estará a ser por nós silenciado? Neste caso, talvez fosse preferível falar não tanto de silêncio de Deus, mas de silenciamento de Deus.
- O problema é que a atenção de Deus esbarra, quase sempre, com a desatenção do homem. Como reconheceu Eberhard Jungel, o nosso Deus é um «Deus falante» e, mais concretamente, um «Deus chamante». Kierkegaard notou que Deus fala até quando Se cala. E como era bom que nos habituássemos a escutar a força comunicativa de Deus na história. Deus vem sempre e nunca deixa de falar.
Deus vem quando estamos acordados e vem para nos acordar quando, como sucedeu a Samuel, estamos a dormir (cf. 1Sam 5, 3). Deus é o despertador da sonolência em que, tantas vezes, nos deixamos cair. Deus bate à nossa porta e chama (cf. Ap 3, 20). Quando procuramos Deus, verificamos que já Deus nos tinha procurado. Quando vamos ao encontro de Deus, notamos que já Deus tinha vindo ao nosso encontro. No fundo, não é apenas o homem que se torna peregrino de Deus. Deus também Se torna peregrino do homem.
B. Que espaço damos a Deus?
3. Como reconheceu Sto. Agostinho, Deus é mais íntimo a nós do que nós mesmos. E com Sto. Agostinho, cada um de nós pode rezar: «Que eu me conheça, Senhor, como por Ti sou conhecido». De facto, é em Deus que nos conhecemos, é em Deus que sabemos quem somos.
Na peregrinação que faz pela interioridade humana, Deus não desiste. Deus persiste. Deus é persistente. Como aconteceu com Samuel, também junto de nós Deus chama uma vez, chama duas vezes, chama três vezes, enfim, chama-nos sempre. Nesta procura, não devemos ter medo de pedir ajuda e não devemos hesitar em oferecer ajuda. Samuel recorreu à ajuda de Eli e Eli não sonegou a sua ajuda a Samuel. Deus serve-Se do homem para chegar ao próprio homem. Como notou Edward Schillebeeckx, «o homem é a palavra de que Deus Se serve para escrever a Sua história». De dia ou de noite, importa estar sempre atento, sempre disponível. Um crente não pode ter as portas fechadas. As portas de um crente têm de estar sempre abertas. Aliás, a Bíblia assegura que a porta da fé está sempre aberta, sempre acessível (cf. Act 14, 27).
- A história da salvação não está sobreposta à história da humanidade. A história da salvação acontece na história da humanidade. Como alertou Xavier Zubiri, nem sequer é preciso instalar Deus dentro do homem porque Deus já lá está instalado. É urgente acolher esta presença que está em nós e escutar esta voz que se faz ouvir dentro de nós. O primeiro passo é deixar Deus falar: «Falai, Senhor, que o Vosso servo escuta»(1Sam 3, 9).
Hoje, as pessoas sentem necessidade de falar, mas não têm grande vontade de escutar. Como todos estão ocupados a falar, como há-de haver tempo para ouvir e disponibilidade para escutar? Resultado: nunca se falou tanto, nunca se terá comunicado tão pouco. Que espaço damos nós a Deus? Que oportunidades estamos dispostos a dar a Deus?
C. O primeiro passo: escutar
5. A escuta é a primeira atitude do servidor. A oração é o grande alento — e o principal alimento — da missão. Como pode falar de Deus quem não está habituado a escutar Deus? Como pode fazer a vontade de Deus quem não conhece a vontade de Deus?
A missão de Samuel nasceu da oração de Samuel, da escuta de Samuel. Os nossos lábios até repetem muitas vezes «seja feita a Vossa vontade»(Mt 6, 10). Mas até que ponto nos disponibilizamos como o salmista: «Aqui estou, Senhor, para fazer a Vossa vontade»(Sal 40, 7)?
- O nosso fazer é a epifania do nosso ser. E o nosso fazer revela que o nosso ser ainda está muito cheio de nós. O nosso ser ainda permanece muito «egocentrado», muito «ego-sentado». Precisamos de converter o nosso ser para transformar o nosso fazer. É preciso que estejamos mais à escuta e mais alerta. A oração não é um desperdício, é um investimento, um poderoso — e precioso — investimento. É na oração que aprendemos a não agir em nosso nome, mas em nome de Deus.
O Deus que vem e que fala é também um Deus que mostra, um Deus que Se mostra. Jesus é a mostração de Deus. Muitos já tinham escutado Deus, mas ainda ninguém O tinha visto (cf. Jo 1, 18). Jesus é Aquele que deixa ver Deus. Por isso, ao ver passar Jesus, João Baptista faz como Eli: encaminha para Jesus, o «Cordeiro de Deus»(Jo 1, 36). Dois dos discípulos de João seguem logo Jesus e querem entrar imediatamente na Sua intimidade.
D. Deus não Se fecha a quem se abre
7. Encontramos aqui o núcleo do conceito de discípulo. Discípulo é mais que aluno. Aluno é aquele que ouve o mestre; discípulo é aquele que vive com o mestre. Daí a preocupação de Jesus em escolher doze para andarem com Ele, para viverem com Ele (cf. Mc 3, 14). Estes dois discípulos de João querem conhecer a morada de Jesus como passaporte para conhecerem a vida de Jesus. Entrar na morada de alguém é entrar na vida desse alguém.
Deus nunca Se fecha a quem se abre. Os discípulos perguntam: «Mestre, onde moras?»(Jo 1, 38). E Jesus responde de imediato: «Vinde ver»(Jo 1, 39). Abrir as portas da casa é abrir as portas da vida. Ficar com Jesus é ficar com Deus. Daí o uso de um verbo que é típico de S. João: o verbo «permanecer». Em Jesus, Deus permanece em nós e nós permanecemos em Deus. Na Última Ceia, Jesus insiste: «Permanecei em Mim e Eu permanecerei em vós»(Jo 15, 5). Jesus é o definitivo de Deus para nós, pelo que permanecer em Jesus é permanecer em Deus: quem está com Jesus está com Deus (cf. Jo 14, 9).
- O Tempo Comum é o tempo para estar com Jesus e o tempo para, em Jesus, estar com Deus. Sucede que o novo corpo de Jesus tem o nome de Igreja, da qual Ele é a cabeça e nós somos membros. A Igreja é a morada de Jesus hoje. Foi Ele quem o garantiu: «Eu estarei sempre convosco até ao fim dos tempos»(Mt 28, 20). Pertencer à Igreja não é fazer parte de uma organização qualquer. A Igreja não tem luz própria nem vida específica. A luz da Igreja é Cristo. A vida da Igreja só pode ser Cristo. Pelo que pertencer à Igreja é pertencer a Cristo. E, neste sentido, convidar as pessoas para pertencer à Igreja é convidar as pessoas para pertencer a Cristo.
Foi, aliás, o que fez André, um dos dois discípulos de João que seguiu Jesus. Apesar do relativo adiantado da hora — eram quatro horas da tarde —, foi logo ter com seu irmão Simão e trouxe-o até Jesus (cf. Jo 1, 42). E é tal o impacto do encontro de Jesus com Simão que até o nome é mudado para Cefas, que quer dizer Pedro (cf. Jo 1, 42). Nasce assim uma pessoa nova, prenúncio da missão totalmente nova que iria ter num tempo, também ele, inteiramente novo.
E. Nunca em «part-time», sempre em «full-time»
9. A missão é, fundamentalmente, isto: quem se deixa encontrar por Jesus é chamado a levar outros até Jesus. Tal é o segredo na Nova Evangelização: sair para levar outros a entrar. Temos de ter consciência de que há muitos que nunca entraram e de que há bastantes que, entretanto, foram abandonando. Temos de ir ao encontro de todos.
Ninguém é obrigado a vir. Mas nós temos a obrigação de ir. Não vamos impor, vamos propor. A evangelização é uma proposta que anela por uma resposta. A proposta tem de chegar a todos: aos de perto, que tantas vezes se sentem longe, e aos longe que anseiam ficar mais perto.
- S. Paulo indica que a evangelização não pode ser feita de qualquer maneira. Afinal, a evangelização é para todos, mas não é para tudo. S. Paulo convida os cristãos a viverem de uma forma consentânea com o chamamento que Deus lhes fez. Um discípulo não pode sê-lo em «part-time», mas sempre em «full-time». Tal como Deus não Se dá parcialmente, mas inteiramente, também nós somos chamados a dar-nos não parcialmente, mas inteiramente.
O nosso corpo também é para Deus e não para a imoralidade (cf. 1Cor 6, 13). Pelo Baptismo, o cristão forma um único corpo com Cristo. O nosso corpo já não é nosso, pertence a Cristo, é «templo do Espírito Santo»(1Cor 6, 19). A vida de um cristão tem de respirar Cristo, tem de saber a Cristo. Se a nossa vida não souber a Cristo, as nossas palavras não atrairão para Cristo. Não tenhamos medo de nos entregar totalmente a Cristo. Quem por Cristo se perde nunca se perderá. E a todos conquistará!