A. Deus confia tudo em nós
- Quem tudo arrisca perder, acaba por tudo ganhar. Quem nada arrisca perder, acaba por tudo desperdiçar. Assim se poderia compendiar o Evangelho que, agora mesmo, foi proclamado. Duas atitudes estão em confronto: ousadia e receio, generosidade e egoísmo, disponibilidade para apostar o máximo e resistência a arriscar o mínimo. Quem tudo arrisca, mantém o que tinha e ainda dobra o que possuía. Já quem nada arrisca, acaba por nada conseguir. Não consegue acrescentar e não consegue sequer conservar.
Na vida, nem sempre é este o desfecho. Às vezes, o calculismo compensa. Mas para Deus, é sempre este o resultado. Só recebe quem dá, quem se dá. Deus está do lado de quem aposta tudo e premeia quem arrisca sempre. Jesus tanto elogia o que obteve dois como o que alcançou cinco. Só censurou o que enterrou um. Jesus não exige que consigamos muito; o que Ele quer é que demos tudo, é que nos demos totalmente.
- Quando se passeiam por este texto, os nossos olhos fixam-se logo nos talentos. O talento começou por ser uma unidade de peso, usada sobretudo para medir metais preciosos. Por exemplo, na Babilónia, um talento equivalia a 60 quilos. Com o passar do tempo, o valor baixou, situando-se entre 35 e 26 quilos. Mesmo assim, um talento equivalia a 6000 denários. Se pensarmos que o denário era o salário de um dia de trabalho, então concluiremos que um talento — ou seja, 6000 denários — era o equivalente a uma vida inteira de trabalho.
Eis, portanto, o que Deus nos entrega, o que Deus deposita nas nossas mãos. Deus é, sem dúvida, muito pródigo e infinitamente generoso para connosco. Se um único talento equivale a uma vida de trabalho, cinco talentos corresponderão a cinco vidas de actividade. Trata-se, portanto, de um imenso dom, vindo de Deus, e que antecede sempre a nossa acção. Antes da nossa acção está o Deus do dom e o dom de Deus. Deus aposta tanto em nós, Deus confia tudo em nós!
B. O que rende não é só ir ao Continente
3. Jesus não valoriza tanto o resultado como o esforço. O importante é o esforço, a dedicação. Aquilo que Deus nos entrega não é para conservar, mas para repartir. Neste caso, Deus não quer que sejamos conservadores, mas ousados. Temos de ser conservadores em guardar a fé, mas nunca podemos ser conservadores para nos resguardarmos na transmissão da fé. O que Ele nos deu é para ser dado, o que Ele nos doou é para ser doado. O que Ele nos ofereceu não é nosso nem é só para nós. O que Ele nos entregou é para todos.
Acontece que — sublime paradoxo — quanto mais damos, mais recebemos. Trata-se de uma situação em que a divisão anda de mãos dadas com a multiplicação. Quanto mais se divide o que nos foi entregue, mais se multiplica o que nos foi dado. Dir-se-ia que o que rende não é só ir ao Continente; o que verdadeiramente rende é levar o Evangelho às pessoas de todos os continentes! Num lado, o que rende é o consumo e o consequente lucro. Noutro lado, o que rende é a missão e, nessa medida, a felicidade. O consumo até poderá ser reduzido. Mas a fruição será sempre saborosa e muito gratificante. Nada, de facto, é tão gratificante como ajudar a (re)encontrar um sentido para vida.
- Os dois primeiros servos descritos na parábola não perderam tempo. Partiram logo (cf. Mt 25,15.17). Na missão, não podemos perder tempo. S. Paulo lembra-nos que o «dia do Senhor» chegará de surpresa. Ele diz até que «virá como o ladrão»(1 Tes 5, 2). Todos nós notamos que a vida é breve e o tempo é veloz. No início, o tempo parece que não anda. Depois, notamos que o tempo passa. De seguida, verificamos que o tempo (es)corre. Finalmente, vamos percebendo que o tempo voa. Não podemos ficar à espera da ocasião mais oportuna. É preciso agir — e insistir na acção — mesmo quando parecer inoportuno (cf. 2Tim 4, 2).
A missão não pode esperar, pelo que não nos podemos atrasar. Jesus tem palavras de elogio para quem não se atrasou, para quem não se preocupou com conservar (cf. Mt 25,20.22). Na missão, um cristão não pode ser conservador. Jesus inaugurou um movimento de transformação e legou-nos uma mensagem de mudança. Ele não veio para que tudo fique na mesma. Ele veio — e continua a vir — para que tudo seja diferente, para que tudo possa ser melhor. Eis uma tarefa que está muito longe de ser dada por concluída. Não podemos, pois, estacionar no já dito ou insistir no já conseguido.
C. Deus é (muito) mais forte que o medo
5. O que Deus nos confiou não é para Lhe ser devolvido no mesmo estado; é para Lhe ser entregue depois de ser partilhado. É verdade que as dificuldades são muitas e os obstáculos parecem infindáveis. O terreno não é facilmente arável e, por vezes, dá sinais de estar minado ou envenenado. Mas há que não desistir. O importante é tentar.
Jesus não repreende o terceiro servo por não conseguido, mas por não ter tentado. Deus não quer que Lhe devolvamos o que nos entregou num estado intacto. Ele até gostará de ver as nossas mãos sujas por termos ido para os terrenos mais enlameados.
- Às vezes, não tão poucas vezes assim, assemelhamo-nos a este terceiro servo. Convocamos pretextos e alinhamos desculpas. Mau sinal é quando as justificações prevalecem sobre a determinação. Não foi em vão que S. João Paulo II nos pediu para não termos medo. Ele sabia que o medo nos tolhe e nos aprisiona desde o princípio. Já Adão tinha medo de Deus e, por isso, escondia-se d’Ele (Gén 3,10).
O medo assenta num equívoco. Quer Adão, quer este terceiro servo têm uma falsa imagem de Deus, visto como alguém duro que nos policia e está sempre pronto a castigar-nos. Daí que fiquemos paralisados, adormecidos e amortecidos sem perceber que os dons de Deus são despertadores e motivadores. Se o medo está alojado em nós, o Deus que vence o medo também habita dentro de nós. E Deus é muito mais forte do que todos os medos juntos.
D. O pior defeito de um apóstolo
7. É natural que sintamos um certo medo. Como não ter medo num tempo como este? Mas não é impossível vencer o medo. Como observou Nelson Mandela, ter coragem não é não ter medo; é vencer o medo que se tem. E se tudo podemos em Cristo que nos dá força (cf. Fil 4, 13), como não haveríamos de, com Cristo, vencer o medo?
Os nossos tempos parecem ser medonhos e amedrontadores. Não podemos, porém, ficar afogados em todos estes medos. O cardeal Stephan Wyszynski alertou que «o pior defeito de um apóstolo é o medo. O medo incita a duvidar do Mestre e estrangula o coração e a garganta». Em relação ao medo, é certo que não podemos impedir que ele apareça. Mas podemos impedir que ele nos assalte e nos devore. Mike Horn aconselhava: «Não deixes que o medo seja o assassino dos teus sonhos». Medo é, pois, o que nunca pode ter o seguidor de Jesus Cristo.
- Aliás, o Evangelho que escutámos é redigido numa altura em que o medo começava a sobrevoar o ambiente entre os cristãos. Algumas divisões e a possibilidade de algumas perseguições desencadeavam algum desalento e não pouca desmotivação. Recorde-se que estávamos no final do século I, aí pela década de 80. Os cristãos, talvez já cansados de esperar a segunda vinda de Jesus, perderam muito do seu entusiasmo inicial. Era preciso, portanto, redespertar a fé, reaquecer o espírito e renovar o compromisso com o Evangelho.
No fundo, o que se insinua é que, ao contrário do que muitos pensavam, o fim dos tempos ainda está muito longe. Ainda falta muito tempo e sobretudo muita missão.
E. Não tenhamos medo
9. Viver em Cristo é ser ousado. É não deixar correr, é não desistir. Viver em Cristo é nunca começar a desistir e nunca desistir de começar. Na missão, é normal — e até desejável — que percamos alguma coisa. É bom, com efeito, que percamos calculismo, que percamos falsas seguranças, falsas certezas e falsas defesas. Kierkegaard percebeu tudo isto notavelmente: «Ousar é perder o equilíbrio momentaneamente. Não ousar é perder-se»! E, depois, só merece ganhar quem está disposto a perder. Já Clarice Lispector confidenciava: «Sinto necessidade de arriscar a minha vida. Só assim vale a pena viver»!
O caminho de Jesus é um caminho de ousadia, um caminho de risco. Jesus segura-nos e defende-nos, mas não nos ilude com falsas seguranças, com falsas certezas nem com falsas defesas.
- É preciso arriscar. Não tenhamos medo de ser diferentes. Não tenhamos medo de proclamar o que recebemos de Jesus: o Seu Evangelho, a Sua mensagem, a Sua doutrina. Não tenhamos medo, ainda que muitos nos tentem meter medo. Não tenhamos medo de levar Jesus a todos. Não tenhamos medo de rezar. Não tenhamos medo de ajoelhar. Não tenhamos medo de nos confessar. Não tenhamos medo de proclamar o Evangelho de Jesus e a doutrina da Igreja de Jesus. Não tenhamos medo de viver como cristãos. Não tenhamos medo da verdade e da justiça.
Hoje mesmo, 16 de Novembro, faz 25 anos que foram assassinados vários sacerdotes e religiosas em El Salvador pelo crime de, em nome de Jesus, estarem ao lado dos mais desfavorecidos e injustiçados. Mas são vidas assim aquelas a que nem a morte põe fim. Seria mais cómodo ficar quieto. Mas um cristão não é propriamente um quietista. Deus está ao lado dos que se inquietam, dos que inquietam. Guardemos, pois, o Evangelho, mas não nos resguardemos de arriscar tudo pelo Evangelho. Quando arriscamos podemos perder. Mas quando arriscamos tudo pelo Evangelho, nunca nos perderemos!