A. Nada mais contrário, nada mais perto
- Muito difícil já é conseguir palavras para dizer a vida. Como haveria de ser fácil encontrar palavras para dizer a morte? Como dizer aquilo que não se diz? Como falar daqueles que já não falam? E, apesar disso, tanto se diz sobre a morte, tanto se escreve sobre a morte. A título de exemplo, se colocarmos a palavra «morte» no Google, seremos logo surpreendidos com 184 milhões de entradas!
De certa forma, até se entende que assim seja. A morte encerra um paradoxo inultrapassável. Sendo o mais distante, acaba por ser também o mais próximo. Nada é mais contrário à vida do que a morte. E, não obstante, nada está tão perto da vida como a morte. Ela entra em nossa casa, senta-se à nossa beira, caminha ao nosso lado até que, um dia, nos abocanha e nos leva com ela.
- Sabemos que morremos desde que nascemos. A bem dizer, começamos a morrer no momento de nascer. Benjamin Franklin até observou, com evidente sarcasmo, que só temos duas coisas certas: a morte e os impostos. Como diz o povo, a morte é certa, só a hora é incerta. Parafraseando um conhecido político, sabemos que iremos morrer, só não sabemos quando. De uma coisa podemos ter a certeza: por muitos anos que vivamos, hoje estamos mais perto do dia da nossa morte do que estávamos ontem.
A morte convive connosco. O mais estranho vai-se convertendo no mais íntimo. A morte acena-nos desde sempre. Ameaça-nos com frequência. É verdade que vai coleccionando muitas derrotas na dura batalha que travamos com ela. Somos capazes de vencer a morte muitas vezes. Mas, quando ela vence, basta-lhe vencer uma vez. É uma vitória sem remissão, é um triunfo que não admite desforra. Quem não treme diante da morte? E quem não estremece perante a recordação dos mortos? Até Jesus chorou quando morreu (cf. Heb 5, 7). Até Jesus chorou quando soube da morte dos Seus amigos (cf. Jo 11, 35-36).
B. Os mortos «pós-vivem» e os vivos «pré-morrem»
3. A morte é mesmo assim. Sempre eficaz, embora não muito constante na sua forma de agir. Umas vezes, vem de repente, sem avisar. Outras vezes, vai dando sinais de que está para vir. Em qualquer caso, é impiedosa, inclemente, implacável. Quando chega, torna-se inapelável. Não admite discussão nem concede segundas oportunidades. A morte deixa-nos atónitos e completamente afónicos. Palavras para quê? Tudo isto pertence ao mistério. É por isso que o nosso lugar na morte devia ser o silêncio. Acerca da morte, as palavras morrem nos lábios e os pensamentos como que secam na mente. Mas não é só a morte que impõe silêncio. A esperança também não costuma falar. A esperança acompanha-nos na vida e nem diante da morte parece dá sinais de desistir.
Alguns acham melhor afastar a morte do pensamento e afastar o pensamento da morte. Hans Kung notou que a morte se converteu no grande tabu dos nossos tempos. Mas que adianta afastar o pensamento da morte e afastar a morte do pensamento? Quando ela resolve vir, ninguém a detém.
- Há alturas do ano em que tudo nos lembra a morte. Os inícios de Novembro, época de colheitas, são tempos de nostalgia, tempos de recordação, tempos de muita saudade. São tempos em que as lágrimas descem à terra: à terra onde repousam muitos que conhecemos, à terra onde jazem tantos que nunca deixamos de lembrar e amar.
O grande ponto de encontro, por estes dias, é o cemitério. É no cemitério que os vivos mais se encontram. É no cemitério que os vivos se encontram por causa dos mortos. É no cemitério que os mortos parecem sobreviver na recordação feita pelos vivos. De certa forma, o cemitério é o lugar onde os mortos «pós-vivem» e os vivos «pré-morrem». Sentimos que onde os mortos já estão nós, um dia, também estaremos. Os vivos começam a partir para a eternidade com os que já morreram e os mortos continuam a ficar no tempo com os que ainda vivem.
C. «Defuntos», não «finados»
5. Numa lápide, foi encontrado este verso: «Ó tu mortal que me vês/ repara bem como estou./ Eu já fui o que tu és/ e tu serás o que eu sou». Este intercâmbio entre mortos e vivos foi celebrizado por Saint-Exupéry: «Aqueles que passam por nós, não vão sós, não nos deixam sós. Deixam um pouco de si, levam um pouco de nós». É por isso que, como observa Eduardo Lourenço, «nós não enterramos os mortos; os mortos é que se enterram em nós».
Percebe-se, por conseguinte, que Sto. Agostinho não considerasse os mortos como ausentes. Dizia ele que «aqueles que nos deixaram não estão ausentes, apenas invisíveis. Têm os olhos cheios de glória, fixos nos nossos, cheios de lágrimas». E não há dúvida de que, nestes dias, as nossas lágrimas falam mais — muito mais — que os nossos lábios.
- Para quem acredita, este não é nenhum dia de finados, mas, como a Igreja nos adverte, o dia da comemoração dos fiéis defuntos. Finado vem de fim, ou seja, indica alguém que se finou, alguém que acabou para sempre. Ora, nós acreditamos que quem morre continua vivo, na eternidade. Já defunto vem do verbo fungor, que quer dizer cumprir. Defunto é, portanto, o que cumpriu: o que cumpriu a etapa terrena da vida e já está na fase eterna da existência. No meio disto tudo, reconheçamos que as palavras são o que menos importa. Contudo, podem ajudar-nos a perceber o que está em causa. E, com efeito, todos nós sentimos que os nossos mortos não estão mortos. Eles sobrevivem. Sobrevivem em Deus e sobrevivem em nós.
Desde tempos muito recuados, a Igreja fez eco deste sentimento geral. No Ocidente, a partir do século VII, havia o costume de dedicar um dia à oração pelos defuntos nos mosteiros e em muitas outras igrejas. No século IX, um liturgista chamado Amalário Simpósio (ou Amalário Fortunato) promoveu os ofícios dos mortos logo a seguir aos ofícios dos santos. Foi, entretanto, o abade de Cluny Sto. Odilon quem decidiu colocar, talvez no ano 998, a comemoração dos fiéis defuntos a 2 de Novembro. Tendo começado pelos mosteiros desta ordem religiosa, esta celebração foi-se estendendo a toda a Igreja entre os séculos XIII e XIV.
D. Nem a morte é o fim
7. Este é, pois um tempo em que o tempo como se auto-suspende para nos fixarmos para lá do tempo. De facto, os nossos familiares e amigos não estão sob a terra, mas além do tempo. Daí que este seja o tempo em que o tempo se senta. Só a eternidade parece voar. Há uma espécie de permuta: o tempo aloja-se na eternidade e a eternidade como que decide acampar no tempo.
Já o Antigo Testamento assegura que é «um santo e salutar pensamento orar pelos mortos»(2Mac 12, 46). Assim sendo, aproveitemos estes dias também — e sobretudo — para rezar. Os outros necessitam e nós também precisamos. Os outros necessitam de sufrágio e nós precisamos de conversão. Na oração, os vivos como que se enlaçam com os mortos e os mortos como que se entrelaçam com os vivos. Os mortos ficam mais vivos sem que nós, os vivos, nos sintamos antecipadamente mortos.
- Afinal, a morte não é o fim. Muito termina com a morte, mas muito também começa com a morte. É a fé que tudo muda. É na fé que tudo se transfigura. Na fé, nem a morte é o fim. A morte é como uma porta: fecha a vida terrena e abre-nos para a vida eterna. Na fé, nem o fim é fim. Como dizia Hans Urs von Balthasar, Cristo é «o fim sem fim». Em Jesus Cristo, a morte não é morte. A morte de Cristo foi uma morte morticida, uma morte que matou a morte, uma morte que foi vencida pela vida. Jesus mostra-nos que é preciso morrer para vencer a morte. Só quem morre ressuscita. Só quem dá a vida alcança a vida. A vida só se tem quando se dá. É assim que, em Jesus Cristo, a morte não é termo, é passagem; não é fim, é trânsito. Termina o ciclo da nossa vida terrena. Começa o ciclo da nossa vida eterna.
Quem participa nas Missas exequiais vai notando que uma das afirmações mais significativas de um dos prefácios é a que proclama que «a vida não acaba, apenas se transforma» (vita non tollitur, sed mutatur). O que talvez não se saiba é a origem desta expressão. Ela vem já do século III e pertence a uma mãe: as mães são sempre sábias! Foi, de facto, a mãe de S. Sinforiano que, vendo o filho a ser julgado pelo crime de ser cristão, o confortou com estas palavras: «Renova a tua constância. Não podemos temer uma morte que nos leva, com certeza, à vida. Mantém alto o teu coração, meu filho, olha para Aquele que reina nos Céus. A vida não acaba, apenas se transforma. Hoje, a vida não te é tirada; é mudada numa melhor».
E. A eternidade começa no tempo
9. A fé até para a morte tem uma saída. Para quem crê, a vida não acaba na morte; não se transforma em morte; transforma-se na morte. No fundo, viver é um contínuo transformar-se, a que nem a morte põe fim. Bergerac tem razão quando escreve: «Morrer não é nada, é terminar de nascer». Depressa partimos, rapidamente chegamos. A vida é, também ela, uma viagem. Nas viagens, é nas partidas que começamos a chegar e é nas chegadas que nos preparamos para, novamente, partir. Também na vida, é ao nascer que começamos a morrer e é na morte que acabamos, definitivamente, de nascer.
Uma pergunta se impõe então. Para quê tantas zangas, para quê tantos ódios, para quê tanta maldade? Tudo isso acaba com a morte e nada disto contribui para a felicidade que desejamos possuir além da morte. Não há Céu sem Terra. Não façamos da Terra uma negação do Céu. Façamos de cada momento vivido na Terra uma construção da felicidade que esperamos saborear no Céu. Não magoemos ninguém. Não atropelemos a vida de ninguém. Quando nós partirmos, que o nosso rasto tenha o sabor da bondade. Só o bem diz bem. Só o bem faz bem.
- Não esqueçamos que eternidade não é só o que vem depois do tempo. A eternidade começa no tempo. Afinal, «o Céu existe mesmo» e começa na Terra, quando se põe em prática o Evangelho que Jesus espalhou pela Terra. Quem está com Jesus antes da morte, estará em Jesus na vida depois da morte. Aparentemente, vivemos para morrer. Em Cristo, porém, morremos para viver.
É doloroso o caminho até à morte. Mas vale a pena atravessar a morte sabendo que vamos ao encontro definitivo d’Aquele que venceu a própria morte. Aqueles que choramos neste dia, do princípio ao fim, estão à nossa espera para a grande festa. No Dia que não tem fim!