A. Ele fica em nós quando saímos de nós
1. Por hábito, todos gostamos de levar e trazer. Mas, por norma, não gostamos de quem leva e traz. Se calhar, ainda gostamos um bocadinho de quem traz; de quem leva é que não costumamos gostar. O povo diz que «quem leva e traz não faz a paz». Levar e trazer é o pantanoso terreno da intriga, da insinuação e de toda a maledicência.
Acontece que, se pensarmos bem, a missão consiste, antes de mais, em levar e trazer. Levar e trazer é o que faz a missão acontecer. O missionário é o que leva e traz: é o que leva Cristo e é o que traz para Cristo; é o que leva Cristo às pessoas e é o que traz as pessoas para Cristo. Nada mais é a missão.
- Foi, aliás, o próprio Jesus que lançou as bases da missão. Antes de voltar para o Pai, ofereceu-nos uma certeza e deixou-nos uma ordem. A certeza é que Ele iria ficar (cf. Mt. 28, 20). E a ordem era que nós saíssemos (cf. Mt. 28, 19). Concretizando, Jesus fica quando nós saímos; Jesus fica em nós quando nós saímos de nós; Jesus fica em nós quando somos capazes de ir além de nós; em síntese, Jesus fica em nós quando nós O levamos aos outros.
O Papa Francisco lembra que, «hoje, ainda há muita gente que não conhece Jesus Cristo». De facto, há muita gente que não conhece Jesus Cristo porque nunca ouviu falar d’Ele. E há muito gente que não conhece Jesus Cristo mesmo tendo ouvido falar d’Ele.
B. Evangelizar não é o primeiro passo; é o segundo
3. Evangelizar é converter-se ao Jesus do Evangelho e anunciar o Evangelho de Jesus. Assim sendo, o primeiro passo do evangelizador não é evangelizar. Evangelizar será o segundo passo. O primeiro passo do evangelizador é deixar-se evangelizar. Esta é a carência, esta tem de ser a urgência.
Com efeito, como pode evangelizar quem não está evangelizado? Como pode evangelizar quem não se deixa evangelizar? Mas como poderá deixar-se evangelizar quem pensa que já está evangelizado? Nunca percamos de vista que a evangelização não é um factum, mas um fieri. Ou seja, não é uma coisa feita; é um contínuo fazer-se. Alguma vez poderá ser dada por concluída a evangelização?
- Só está em condições de evangelizar quem se deixa evangelizar. É aqui que radicará, basicamente, a novidade da Nova Evangelização, passe a redundância. O recorrente uso da expressão Nova Evangelização não significa obrigatoriamente uma falência da precedente evangelização, mas chama a atenção para uma possível insuficiência da anterior evangelização. E atente-se que esta anterior evangelização pode nem ter sido uma evangelização muito antiga. Pode, eventualmente, tratar-se de uma evangelização recente, mas rapidamente esgotada. Terá sido uma evangelização alicerçada em bons conceitos e belas estratégias, mas será que tinha sabor a Evangelho?
Será que toda a evangelização sabe a Evangelho? Sem Evangelho na vida, será lícito falar de evangelização? Sem oração, haverá evangelização? Sem Eucaristia, haverá evangelização? Sem formação, haverá evangelização? Sem amor ao próximo, haverá evangelização? Para haver Evangelho, não pode haver apenas conhecimento do Evangelho; tem de haver sobretudo vivência do Evangelho: uma vivência despojada, uma vivência constante, uma vivência alegre, uma vivência autenticamente felicitante.
C. O evangelizador também tem de ser evangelizado
- Quando S. João Paulo II falou de Nova Evangelização em 1983, especificou que ela tinha de ser «nova no seu ardor, nos seus métodos e na sua expressão». Não se trata, portanto, de um novo conteúdo. O conteúdo da Nova Evangelização é o mesmo das anteriores etapas da evangelização. O conteúdo de toda a evangelização é sempre — e apenas — Jesus Cristo. Mas quando se refere a necessidade de um novo ardor, é porque a evangelização que estávamos a fazer era morna, insípida, fria ou tépida, incolor e indolor, sem chama nem paixão. E quando se alude a novos métodos e expressões, é sinal de que os métodos e as expressões que utilizámos não atraíam, não cativavam, nem entusiasmavam.
Como muito bem explica D. António Couto, o problema da evangelização «não reside nos destinatários» (…); «reside no sujeito evangelizador que, para o ser, terá também de ser fruto de evangelização». O nosso mal é que continuamos a achar que a responsabilidade do insucesso nosso é culpa de outros. Dizemos que os outros não querem aderir; mas será que nós não damos motivos para recusar? Alegamos que os outros não querem vir; mas será que nós nos dispomos a ir? E, quando vamos, que levamos? Não basta ir a todos os lugares. Não é suficiente chegar a todas as pessoas. É preciso ir a toda a parte com o Evangelho. É urgente chegar a toda a gente com o Evangelho. A chegada do evangelizador tem de ser a chegada do Evangelho. Mas só pode levar Evangelho quem procura converter-se ao Evangelho. Aliás, como encher os outros com o Evangelho se nós estivermos vazios de Evangelho?
- «Quem não precisa de conversão?», perguntava o saudoso D. Hélder Câmara. O evangelizador também tem de ser evangelizado. É por este motivo que — lembra de novo D. António Couto — «o sacramento da Penitência ou da Reconciliação é o sacramento-chave da Nova Evangelização». Só pode ajudar a converter a Cristo quem se deixa converter por Cristo. Quem não assume as suas falhas, como pode ajudar os outros a reconhecer os seus erros? O sacramento da Confissão, que nos vem do passado, está longe de estar ultrapassado. A conversão a Cristo e ao Evangelho de Cristo é o ponto de partida para atrair os outros para Cristo.
Para isso, não chega trazer o Evangelho na mente e nos lábios; é fundamental trazer o Evangelho no coração e na vida. Só a partir da vida se pode chegar à vida. Aliás, o Evangelho está escrito no livro para ser (permanentemente) inscrito na vida. Entende-se, assim, que S. João de Calábria, que clamava por um «regresso ao Evangelho», insistisse para que fôssemos «Evangelhos vivos». Caso contrário, só haveria evangelhos mortos, mortiços ou amortecidos, que nem merecem sequer o nome de Evangelho.
D. É preciso vitaizar a fé e fidelizar a vida
- O Evangelho é mais da ordem do testemunho do que do mero conhecimento. Paulo VI, que hoje mesmo é beatificado, percebeu que «o homem contemporâneo escuta com maior boa vontade as testemunhas do que os mestres». Se escuta os mestres, é «porque os mestres são testemunhas». De resto, o referido Pontífice tinha já identificado, como sendo um dos grandes males do nosso tempo, o divórcio entre a fé e a vida. E é notório que, não poucas vezes, a fé parece estar com pouca vida e a vida parece estar com pouca fé. É preciso, portanto, pôr mais vida na fé e colocar mais fé na vida. Em suma, é urgente vitalizar a fé e fidelizar a vida.
Nesta tarefa, temos de nos mobilizar todos e de nos mobilizar sempre. A missão não é só para alguns nem para alguns momentos. A missão é para todos e é para sempre. Ela não começa com o sacramento da Ordem nem com a consagração religiosa. A missão começa com o sacramento do Baptismo. Foi por isso que o Vaticano II recordou que «a Igreja é, por natureza, missionária». Não se pode, portanto, ser cristão sem ser missionário. Onde está o cristão, aí tem de estar a missão.
- Vós sois tão missionários como eu. Eu sou missionário para vós, vós sois missionários para mim. Eu também preciso de ser evangelizado por vós, eu também preciso de aprender convosco. Os padres, os bispos e os religiosos também precisam de ser evangelizados pelo povo. Cada um tem a sua missão e cada um tem muito a crescer com a missão dos outros. O Evangelho não é privilégio de ninguém nem exclusivo de alguns; é dom para cada um e responsabilidade para todos.
Em linha com os tempos dos começos, somos convidados a formar, segundo a pertinente linguagem de D. António Couto, uma «Igreja da anunciação» e uma «Igreja da fidelidade». No fundo, é neste duplo alicerce que assenta a evangelização: anunciar e ser fiel. A Igreja está no mundo para anunciar o Evangelho e para ser fiel ao Senhor Jesus. E a novidade ínsita na Nova Evangelização não está nas estratégias, mas na fidelidade. Do que se trata, por conseguinte, é de renovar a fidelidade ao Senhor Jesus. Daí que a missão tenha de ser alentada — e alimentada — pela oração. A oração é a parteira da missão, pois só quem vem de Cristo será capaz de encaminhar para Cristo.
E. Sempre em missão, nunca em demissão
- Este é, pois, um dia para tomarmos consciência do que devemos ser todos os dias: enviados, apóstolos, evangelizadores. Neste dia, somos convidados a oferecer alguma coisa para as missões. Em cada dia, não deixamos de ser interpelados para que nos ofereçamos a nós mesmos em missão. É preciso escutar o apelo que o Senhor nos dirige. Ninguém se pode sentir demissionário; cada um deve sentir-se autenticamente missionário. Somos chamados a viver sempre em estado de missão e jamais em estado de demissão. Desde a nossa casa até aos confins da terra, todos somos necessários, todos nos devemos sentir mobilizados. De nós o Senhor não espera apenas competência; espera sobretudo generosidade.
Todo o evangelizador é um seguidor de Cristo e há-de procurar ser um servidor em Cristo. O mundo tem necessidade do Evangelho, do Evangelho inteiro, do «Evangelho sem glosa» de que falava José Mattoso. Como diz S. Paulo, o Evangelho não se anuncia apenas com palavras (cf. 1Tes 1, 5); há-de anunciar-se sobretudo com o testemunho da vida, sob «a acção do Espírito Santo e com profunda convicção»(1Tes 1, 5).
- Voltando a fecundas expressões de D. António Couto, diria que é urgente implementar uma «evangelização non-stop», sem pausas, sem recuos e «sem andaimes». O Evangelho tem de estar no começo, no meio e no fim de tudo, sem equívocos nem confusões: o que pertence a César deve ser entregue (ou devolvido) a César; o que pertence a Deus deve ser entregue (ou devolvido) a Deus (cf. Mt 22, 21). E o que pertence a Deus? É o ser humano, somos nós. É por isso que, como notava Sto. Agostinho, o nosso coração anda inquieto enquanto não repousar em Deus.
A evangelização existe para chegar a todo o homem, para lhe dizer que Deus o ama e para lhe assegurar que só será feliz em Deus. Deus é o maior investidor na felicidade do homem: apostou o melhor que tinha — o próprio Filho (cf. Jo 3, 16) — na felicidade de todos os homens. Evangelizar é, pois, felicitar, é semear felicidade. Não é o Evangelho que nos afasta de ninguém. O Evangelho é o que mais nos aproximará de todos!