A. Má é a violência, pior é quando a violência se prolonga
1. O ano lectivo ainda há pouco começou e já se ouve falar de violência, do (tristemente) célebre «bullying». Será que Jesus também sofreu de «bullying»? À partida, a pergunta parece bizarra e a formulação despropositada. «Bullying» é um conceito novo, próprio destes tempos novos.
Trata-se de um termo popularizado sobretudo a partir dos estudos do Prof. Dan Olweus, na Universidade de Bergen (Noruega), entre 1978 a 1993. É uma palavra inglesa, mas até quem não conhece minimamente a língua é capaz de reconhecer perfeitamente a palavra. E não foi o dicionário que no-la mostrou; é sobretudo a vida que no-la tem apresentado.
2. Quem são os pais que, nesta altura, não estão preocupados pela possibilidade de os seus filhos virem a ser vítimas de «bullying»? Acresce que o «bullying» nem sequer costuma ser episódico. O mal do «bullying» é que tende a prolongar-se no tempo e a cavar-se na alma. O mal do «bullying» é que não acontece uma vez nem acontece poucas vezes. O mal do «bullying» é que costuma ser intencional, persistente e desesperante.
Dizem os peritos que o «bullying» é uma forma deliberada de violência que se repete ao longo do tempo com o objectivo de afirmar o poder do agressor sobre a vítima. Há, portanto, aqui três ingredientes explosivos: o poder, a conquista do poder contra os outros e a conquista do poder através da violência. Sintetizando ainda mais, dir-se-ia que o «bullying» significa três coisas, três coisas muito negativas: dominar, humilhar e agredir. E ressalve-se que a violência pode não ser física ou pode não ser apenas física. A violência pode igualmente envolver ameaças, humilhações, ofensas e calúnias. E todos nós sabemos que a dor que dói não é somente a dor física. A dor da alma não dói menos nem mói menos. A dor da alma pode moer tanto ou mais que as outras dores e pode conduzir até ao pior desfecho: a morte.
B. Também não faltou quem agredisse Jesus
3. Acresce que o «bullying» não se pratica só directamente, face a face. Também se pratica através de sms, através da internet e, mais concretamente, através das redes sociais. O «cyberbullying» está a transformar-se rapidamente numa perigosa modalidade de «bullying». Sucede que, por instinto de autodefesa, as vítimas têm dificuldade em assumir. Levam muito tempo a falar do que se passa e do que sofrem. Às vezes, já é tarde, muito tarde para que se possa agir e corrigir. E refira-se que este fenómeno está a tomar proporções alarmantes. Segundo alguns estudos, em certos locais do nosso país, 30 em cada 100 alunos são atingidos por «bullying».
Temos de estar atentos. Temos de estar alerta. E temos de estar despertos. É muito triste que as relações entre iguais estejam tão adulteradas, tão verticalizadas. É sumamente penoso que colegas olhem para colegas como inferiores e não como irmãos ou amigos. E é supinamente indigno que não se olhe a meios para atingir estes fins. Com efeito, há quem não aguente e, por isso, há quem morra e seja morto. E, como é óbvio, também não deixa de haver quem se transfigure. Ou seja, também há quem responda à violência com violência contribuindo assim para o agravamento da violência. Tudo isto, refira-se, acontece com pessoas ainda muito pequenas, à partida com grande futuro à sua frente. Mas se o presente destas pessoas é assim, como será o seu futuro? Como será o nosso futuro com pessoas assim? Em suma, que futuro esperar para este presente?
4. Só que, se pensarmos bem, o «bullying» não é de agora. Afinal, o Filho de Deus também esteve submetido a um permanente «bullying». Ainda criança e já recebia ameaças, tendo de fugir para o Egipto (cf. Mt, 2, 1-12). E que foi a Sua vida pública senão uma permanente exposição a toda a sorte de «bullying»? Nunca Lhe faltaram opositores, adversários e inimigos. Não faltou sequer quem O atacasse fisicamente (cf. Jo 18, 22), agredisse verbalmente e desgastasse moralmente (cf. Mt 11, 19).
Este texto, que acabamos de ouvir, é uma parábola que ilustra fidedignamente o permanente «bullying» a que Jesus esteve sujeito. Ele é o Filho que o proprietário envia à vinha depois de previamente ter mandado criados. Estes criados são os profetas, tantos profetas, que Deus enviou e que foram sucessivamente neutralizados e rejeitados. O mesmo iria acontecer, entretanto, ao próprio Filho. De facto, Jesus anuncia que também Ele iria ser morto (cf. Mt 21, 38).
C. A rejeição que dói — e que mói — é a dos que estão perto
5. No entanto, a morte de Jesus não foi a única forma de rejeição de sofreu. Foi a forma terminal, mas, olhando para a vida de Jesus, notamos que todo o Seu percurso foi um misto de aceitação e rejeição. O mais curioso — e o mais doloroso — é verificar que a rejeição não veio de fora, mas de dentro. Os agricultores que matam o filho são a figura dos fariseus, dos sumos sacerdotes e dos anciãos do povo. Ou seja, são a figura daqueles que sempre hostilizaram Jesus: os do Seu tempo, os do Seu povo. Como diz o quarto Evangelho, Jesus «veio para o que era Seu e os Seus não O receberam»(Jo 1, 11).
A rejeição que magoa não é tanto a que vem dos que estão longe; é especialmente a que vem dos que estão perto. E rejeitar é também um modo de eliminar e uma maneira de matar. Na verdade, não se morre só quando a morte chega. A morte também vai chegando com a rejeição. Hoje, continua a não faltar quem insista em afastar Deus da vida e em afastar a vida de Deus. O problema é que, ao cortar com Deus, o homem não fica só sem Deus; arrisca-se a ficar também sem mundo e sem…ele mesmo. E, nesse caso, como escreveu Xavier Zubiri, «é a solidão absoluta».
6. Já no Antigo Testamento, Deus esperava muito do Seu povo, que Ele denomina a Sua vinha. Em Isaías, tudo é muito claro: «A vinha do Senhor (…) é a Casa de Israel»(Is 5, 7). É esta vinha que Deus trata com tanto enlevo e com tanto desvelo: «Que mais se podia fazer à Minha vinha que Eu não lhe tivesse feito?»(Is 5, 4). Tanto esperava Deus da vinha e tão pouco ofereceu a vinha a Deus: «Quando Eu esperava que viesse a dar uvas, porque deu ela só uvas azedas?»(Is 5, 4)! Aliás, este é um sentimento que nós entendemos bem. Tanto trabalho e tanta despesa dá a vinha ao viticultor e tão pouco proveito parece tirar o viticultor da vinha.
Deus está decepcionado com aqueles que escolhe, com aqueles a quem deu tanto, com aqueles a quem deu tudo. De Israel Deus esperava «a rectidão e só há sangue derramado; esperava justiça e só há gritos de horror»(Is 5, 7). Daí que o povo clame para que Deus reconsidere, como escutámos no Salmo Responsorial: «Deus do universo, vinde de novo, olhai dos Céus e vede, visitai esta vinha»(Sal 79, 15). O povo, cujo território foi devastado, reconhece que só Deus lhe pode devolver identidade, estabilidade e felicidade. Por isso, promete nunca mais se afastar de Deus (cf. Sal 79, 19). No entanto, a história demonstrou que a promessa não foi cumprida. Os profetas continuaram a vir. O próprio Filho de Deus visitou o povo. E, não obstante, os focos de rejeição mantiveram-se.
D. Rejeitar também é esquecer
7. Já agora, refira-se que rejeitar não é só hostilizar; é também esquecer. E a experiência atesta que esta não é uma rejeição menos cruel. Já Ellie Wisel confessou que «esquecer é rejeitar». Esquecer alguém significa que esse alguém não existe; que alguém não existe, pelo menos enquanto dura o esquecimento. Como é possível esquecer quem nunca nos esquece? Como é possível esquecer Deus?
A tragédia é que, quando esquecemos Deus, acabamos também por esquecer o homem, por esquecer a humanidade. O esquecimento de Deus e o esquecimento do homem estão dramaticamente entrelaçados: o esquecimento de Deus leva ao esquecimento do homem e o esquecimento do homem leva ao esquecimento de Deus.
8. Ao longo destes vinte séculos, a rejeição de Jesus Cristo — sob a forma de hostilização ou de esquecimento — não ocorre apenas lá fora; também pode ocorrer cá dentro. Aliás, Jesus, perante alguma animosidade em Nazaré, disse que «um profeta só é desprezado na sua terra, entre os seus familiares e em sua casa»(Mc 6, 4). Nós, Igreja, somos, hoje, a Sua terra, a Sua família e a Sua casa. E, como há dois mil anos, é de entre os Seus que sobrevém a traição (cf. Mt 26, 15-27, 3). Do exterior vêm, como é natural que venham, as interpelações. Mas, frequentemente, é do interior que advêm os maiores obstáculos. Muito antes de se tornar Papa, Bento XVI reconhecia que a Igreja, em vez de ser «a medida e o lugar do anúncio, pode apresentar-se quase como o seu impedimento».
É por isso que, não raramente, quando se diz Igreja, muitos pensam num sistema que afasta de Deus e não num povo que caminha para Deus. Só que, na sua génese, a Igreja não está polarizada no sistema eclesiástico, mas em Deus e no Povo: no Deus do Povo e no Povo de Deus. A Igreja é a proposta amorosa de Deus ao Povo. E há-de ser a resposta amorosa do Povo a Deus. E é neste sentido que a Igreja é amada por Deus e querida pelo Povo.
E. Deus está no alto, mas quer ser encontrado em baixo
9. O problema de Israel foi a rejeição de Jesus Cristo. Mas Aquele que é rejeitado pelos homens acaba por ser aprovado por Deus (cf. Act 4, 10): «A pedra que os construtores rejeitaram veio a tornar-se pedra angular»(Mt 21, 43; Sal 118, 22). Trata-se da pedra angular de uma nova construção, de uma nova vinha, de um novo povo. Trata-se da pedra angular da Igreja, formada por judeus e não judeus, sem privilégios nem exclusões. É este povo que há-de dar frutos (cf. Mt 21, 43), ou seja, que há-de levar Cristo a toda a parte e anunciá-Lo a toda a gente (cf. Mt 28, 16-20).
Este povo está destinado a quebrar as fronteiras entre todos os povos. É neste espírito que S. Paulo diz aos cristãos para aceitarem «tudo o que é verdadeiro e nobre, tudo o que é justo e puro, tudo o que é amável e de boa reputação, tudo o que é virtude e digno de louvor»(Fil 4, 8). Venha donde vier, tudo o que é bom acaba por vir sempre de Deus. Dá, por vezes, a sensação de que transferimos as fronteiras dos povos para as pessoas. Já não há praticamente fronteiras entre os povos, mas parece haver cada vez mais barreiras entre as pessoas. Joaquim Alves Correia, homem de coração forte e vistas largas, convidava-nos a olhar precisamente para a «largueza do Reino de Deus».
10. Quebremos todas as barreiras. Não humilhemos mais os humildes nem empobreçamos mais os pobres. Tenhamos presente que muita gente sai porque nós afastamos. Não ignoremos que muita gente não quer entrar porque nós não cativamos. E nunca percamos de vista que Jesus não está só no templo; também está no tempo. Jesus está em todos, especialmente nos mais pequenos. Ele o confirmou: «Tudo o que fizerdes ao mais pequeno dos Meus irmãos, é a Mim que o fazeis»(Mt 25, 40).
Deus está nas alturas, mas Jesus ensina-nos que, para encontrar Deus, o primeiro passo não é olhar para cima; é olhar para baixo, para o fundo. O Reino de Deus é como a semente lançada à terra (cf. Mc 4, 26). Cmo avisava S. Francisco Xavier, «para Deus sobe-se descendo». É na terra — é em cada pessoa que habita na terra — que encontraremos Deus. Nunca nos desencontremos d’Ele. E nunca contribuamos para que alguém se desencontre d’Ele!