A. Muitas são as leis; muito pouco aplicadas são algumas leis
- Armadilhas não são coisa de agora. Jesus pisou, frequentemente, terrenos armadilhados. Eram armadilhas em forma de palavras, palavras capciosas, cheias de segundas intenções. Jesus desembaraçou-Se sempre, e com sublime mestria, desses profissionais da rasteira. Acabámos de ouvir dizer que «Jesus tinha feito calar os saduceus»(Mt 22, 34). É compreensível que os fariseus quisessem ver se Jesus conseguiria fazer-lhes o mesmo. Sendo especialistas em leis e convencidos das suas capacidades, não seria difícil arrastar Jesus para uma discussão em que se instalasse a polémica.
Refira-se que a Lei (a Thora) compreendia não só o Decálogo, mas todo o conteúdo dos cinco primeiros livros da Bíblia: Génesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronómio. Os doutores da Lei chegaram a contabilizar 613 preceitos e é natural que se entretivessem a estabelecer uma ordem nesses preceitos: 365 eram preceitos negativos, ou seja, estipulavam o que não se podia fazer; e 248 eram preceitos positivos, ou seja, apontavam o que se devia fazer.
- Perante tal diversidade, é natural que houvesse uma pluralidade de opiniões. Cada mestre e cada escola teriam a sua posição. Qual seria a posição de Jesus? Certamente que ponderaram várias respostas e partiram do princípio de que qualquer delas daria motivo para O contestarem. Na verdade, se há matéria onde proliferam discussões é quando o assunto versa sobre leis.
O poder pode ser avaro em muita coisa, mas não na produção de leis. O que não falta no mundo são leis. Há leis para todos, há leis para tudo. Até há leis para não cumprir, até há leis para transgredir. Aliás, Chesterton, cheio de uma ironia amarga, dizia que a lei é «algo para ser transgredido». Transgredir leis parece ser uma especialidade de todos. De facto, os males da humanidade não se devem à falta de leis. As leis existem. As boas leis abundam. O problema é que as melhores leis nem sempre são aplicadas nem observadas.
B. E nós, cristãos, cumprimos a nossa lei?
3. Permiti-me ilustrar esta tendência com um episódio extraído das memórias do Prof. Adriano Moreira. No tempo em que ele era ministro, aconteceu-lhe ir em visita oficial a Moçambique, mais concretamente, à cidade da Beira. No encontro com as chamadas «forças vivas» da cidade, estava presente o Bispo, o grande D. Sebastião Soares de Resende, que, a certa altura, coloca uma questão: «A que velocidade vai ser executada a revogação do Estatuto do Indígena?» Tratava-se de uma revogação que tinha sido aprovada há já algum tempo.
Resposta pronta — e sobretudo muito acutilante — do Prof. Adriano Moreira: «Senhor D. Sebastião, a sua lei já tem uns dois mil anos e agradecia que me dissesse a que velocidade vai para ver se o acompanho». E, de facto, ele tinha razão. Ninguém tem uma lei tão bela como nós, cristãos. E, não obstante, passamos o tempo e gastamos a vida a transgredi-la. Algumas vezes, ainda tentamos observá-la. Outras vezes, nem isso.
- Jesus deixou-nos uma lei, uma lei nova, uma lei que nunca deixa de ser nova. Foi no discurso da Última Ceia que, à guisa de herança, no-la legou: «Amai-vos uns aos outros como Eu vos amei» (Jo 13, 34). Só que a lentidão com que nós, cristãos, cumprimos — ou a rapidez com que incumprimos — essa lei é exasperante. Nos começos, notava-se uma preocupação em viver essa lei. Tertuliano dá-nos conta de que os outros, olhando para os cristãos, exclamavam: «Vede como eles se amam!» Ou seja, «vede como eles fazem o que dizem»; «vede como eles põem em prática a sua lei».
É claro que, já nesse tempo, havia problemas. Mas tais problemas eram vencidos. O problema é que, depois, parece que foram os problemas a vencer-nos. Manda a verdade reconhecer, porém, que sempre houve quem se esmerasse na vivência luminosa desta lei. Sempre houve quem desse a própria vida pela lei do amor. Sempre houve quem percebesse que, como advertia Sto. Agostinho, «a medida do amor é o amor sem medida», é o amor desmedido.
C. O amor da lei e a lei do amor
5. Se a lei do amor fosse mais observada, as outras leis quase poderiam ser dispensadas. O amor é persuasivo, a pura lei é coerciva. Se a persuasão não funciona, há quem opte pela coerção. O amor cativa, a lei impõe. E é então que podemos cair num impasse, em que ninguém se sente bem. Daí o aviso de Disraeli: «Quando os homens são puros, as leis são desnecessárias; quando são corruptos, as leis são inúteis». Com efeito, um homem recto não precisa da lei. Já um homem desonesto nem com a lei melhora.
É talvez por razões de eficácia que alguns se vêem compelidos a cultivar mais o «amor da lei» do que a «lei do amor». Isso acaba por inverter o sentido das relações entre as pessoas. O amor da lei esquece, quase sempre, que a lei, em si mesma importante, é apenas um meio, não é um fim. A lei tem de servir as pessoas, nunca podendo servir de pretexto para destruir pessoas. Importa ter presente que, como lembrou Luther King, «tudo o que Hitler fez na Alemanha foi legal». Arrepia, mas é verdade: há sempre vidas que vão sendo degoladas à luz da lei, na escuridão de certas leis.
- A lei é necessária, mas a legalidade não é tudo. É por isso que a lei, sendo para cumprir, pode, por vezes, ter de ser incumprida. Não se trata de uma desobediência gratuita, mas da obediência a uma lei maior: a lei que dimana da própria consciência e que, em último caso, radica no próprio Deus. O Concílio Vaticano II afirma que a consciência é o «santuário secreto». É aí — sobretudo aí — que escutamos a voz de Deus.
Já no Antigo Testamento, Mardoqueu recusa-se, em nome da Lei de Deus, a inclinar-se e a prostrar-se diante da estátua de Amã (cf. Est 3, 5). O risco de vida era enorme, mas a convicção manteve-se inabalável. Há, pois, que distinguir. Nem todas as leis têm o mesmo estatuto ou valor. Para um crente, a Lei de Deus está acima de tudo. Sucede que a Lei de Deus é a lei do amor e, desse modo, do respeito pelas pessoas. Tal significa que nem o Estado pode ser absoluto. Tem limites para a sua actuação e há decisões que são apenas — e sempre — para a consciência
D. O amor é a lei e a lei é o amor
7. Os judeus eram muito ciosos da Lei, da Thora. Para eles, a fonte da Lei não era política, era religiosa. Deus era a origem suprema da Lei. É por isso que o Decálogo regula toda a vida. E, como aprendemos, o Decálogo compendia os «mandamentos da Lei de Deus». Jesus não veio revogar a Lei, mas aperfeiçoar a Lei (cf. Mt 5, 17). E o critério de Jesus para aperfeiçoar a Lei foi sempre o amor. Como se vê no (magno) preceito do Sábado, a lei deve ser sempre para o homem e nunca o homem para a lei. O bem da pessoa é a prioridade. Só honrando a pessoa se honra a Deus.
Em tudo isto, sobressai um princípio de grande alcance: o amor é a lei e a lei é o amor. É neste contexto que o Concílio Vaticano II afirma que a lei suprema do Povo de Deus é o Mandamento Novo do Amor. É para o amor — e não para o desamor — que todas as energias devem ser encaminhadas. O amor deve ser vivido junto dos que pensam como nós e não deve deixar de ser promovido junto dos que pensam diferente de nós. Evocando Pedro Laín Entralgo, diria que é preciso ser «consensuante» mesmo com quem se mostra «discrepante». Assim, o crente amará os que merecem ser amados e não deixará de amar os que não merecem. Até porque estes são os que precisam mais de ser amados.
- É sob este pano de fundo que Jesus contorna sabiamente a armadilha que Lhe colocaram em forma de pergunta: «Qual é o maior mandamento que há na Lei?»(Mt 22, 36). Jesus começa por responder citando a própria Lei, mais concretamente o Livro do Deuteronómio 6, 5: «Amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todas as tuas forças». Acontece que Jesus vai mais longe. Diz não apenas qual é o primeiro mandamento, mas aponta logo o segundo, qualificando-o como semelhante ao primeiro: «Amarás o próximo como a ti mesmo». Aqui, cita uma outra passagem da Lei, consignada no Livro do Levítico 19, 18.
Como muito bem anota D. António Couto, se este mandamento é «semelhante ao primeiro, [então] já não é apenas segundo, mas faz corpo com o primeiro. Sendo assim, o amor a Deus é verificável no amor ao próximo, no nosso dia-a-dia». Só amando o próximo mostramos que amamos a Deus. Aliás, já S. João perguntava: «Quem não ama o irmão que vê, como pode amar a Deus que não vê?»(1Jo 4, 20). Por isso — prossegue o mesmo apóstolo — «quem ama a Deus, ame também o seu irmão»(1Jo 4, 21).
E. Toda a Bíblia está perfumada pelo amor
9. A ligação entre o amor a Deus e o amor ao próximo é tão estreita que S. Gregório Magno viu aqui uma razão simbólica para Jesus mandar os discípulos em missão dois a dois. Mandou-os dois a dois porque «dois são os mandamentos, a saber, o amor a Deus e o amor ao próximo». O que Ele quis dizer, no fundo, foi isto: «Quem não tiver amor para com os outros, de modo algum deve assumir o ofício da pregação».
No amor está «toda a Lei e os Profetas»(Mt 22, 40), isto é, toda a Sagrada Escritura. Jesus, na resposta que dá, vai muito mais além da pergunta. A pergunta preocupava-se apenas com a Lei, mas Jesus, na resposta, deixa bem claro que é toda a Bíblia que está perfumada pelo amor, pelo amor a Deus e pelo amor ao próximo. A qualidade do nosso amor a Deus vê-se na intensidade do nosso amor ao próximo. Se não há amor, não há fé. É por isso que Jesus resume toda a Lei no amor.
- O amor é o que resume toda a Lei, todos os mandamentos da Lei e todos os preceitos que deles se possam extrair. É por isso que quem mais sabe a Lei não é quem mais a conhece mas quem melhor a vive. É preciso viver o amor a partir da nascente, a partir de Deus, que, como nos diz a primeira leitura, ama especialmente os mais necessitados: os mais pobres, os órfãos, as viúvas, os estrangeiros, isto é, todos os que passam privações (cf. Ex 22, 20-26). Também S. Paulo dá testemunho deste amor pondo à frente dos seus interesses os interesses dos outros (cf. 1Tes 1, 5). É muito difícil, mas é muito reconfortante.
Afinal e como garante Jesus, «há mais alegria em dar do que em receber»(Act 20, 35). Até porque quando damos, somos presenteados com a alegria de quem recebe. Nunca recebemos tanto como quando damos tudo. Nunca recebemos tanto como quando nos damos totalmente!