A. O prometido é devido, mas raramente é cumprido
1.Prometer e não cumprir. Eis o que mais condenamos, mas eis também onde todos mais pecamos. Por isso, «quem não tiver pecado, que atire a primeira pedra»(Jo 8, 9). Quem de nós pode assegurar que cumpre tudo o que promete?
Eis um domínio em que ninguém poderá ficar de fora como juiz, já que todos estamos por dentro como infractores. De facto, não são apenas os políticos, que tão apressadamente causticamos, a prometer o que não cumprem e a não cumprir o que prometem.
Bismark achava que nunca se mente tanto como antes das eleições, durante a guerra e depois da caça. Mas eu diria que é praticamente em todos os momentos da vida que faltamos ao prometido. É praticamente em todos os momentos da vida que não fazemos o que dizemos ou fazemos o contrário do que dizemos. Enfim, o prometido até será devido, mas raramente é cumprido.
2. Será que marido e esposa procuram cumprir as promessas que assumiram no dia do Matrimónio? Será que se esforçam por serem fiéis um ao outro, amando-se e respeitando-se «na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, todos os dias da sua vida»?
Será que os pais procuram educar os filhos na fé cristã e na observância dos Mandamentos, como prometeram no dia do Baptismo? E será que, na sequência da referida promessa, procuramos amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos? Será que santificamos o Domingo, cada domingo, e os dias santos participando na Eucaristia? Será que honramos devidamente o nosso pai e a nossa mãe? Será que não alimentamos falsos testemunhos? Será que procuramos ser castos nas palavras e nas obras, nos pensamentos e nos desejos? Será que respeitamos aquilo que não é nosso?
E será que nós, sacerdotes, procuramos — como prometemos — exercer, «digna e sabiamente, o ministério da Palavra, na pregação do Evangelho e na exposição da fé católica»? Será que nós, sacerdotes, procuramos — como prometemos — «celebrar com fé e piedade os mistérios de Cristo (…) principalmente no sacrifício da Eucaristia e no sacramento da Reconciliação»? Será que, como nos foi mandado na ordenação diaconal, «acreditamos no que lemos, ensinamos o que cremos e vivemos o que ensinamos»?
Ninguém está, portanto, em posição de apontar o dedo a alguém. Faltar à palavra dada e à promessa feita não é um exclusivo de alguns, é uma falha de todos. Nossa também.
B. Ninguém é excluído, todos são mobilizados
3. É para toda esta situação que somos alertados, neste Domingo, num cenário que nos é bastante familiar. Se há significante que conhecemos bem é a vinha. É na vinha onde muitos trabalham não só agora, mas também agora, sobretudo agora. A vinha na Bíblia é um significante com um poderoso significado. Ela simboliza o Reino de Deus na terra, tipificado no Antigo Testamento pelo povo de Israel e no Novo Testamento pela Igreja, novo Israel.
Para o trabalho desta vinha ninguém é excluído, todos são mobilizados: os que estão fora e os que estão dentro. Há oito dias, falava-se de um proprietário que saiu para convidar trabalhadores para a vinha. Hoje, fala-se de um homem que manda sair os seus próprios filhos para a vinha. Ou seja, ninguém é descartado, todos são convocados. Aos de fora faz-se um convite para entrar na vinha, aos de dentro faz-se um apelo para sair para a vinha.
O Papa Francisco tem insistido na necessidade de uma Igreja que saia, de uma Igreja em saída até às periferias existenciais. Os que estão dentro têm de sair, para que os que têm estado fora possam entrar. O ponto de encontro é a «vinha do Senhor», isto é, a Igreja que se encontra ao serviço da humanidade.
4. Se alguém afasta, não é Deus que Se afasta de nós. Nós é que podemos afastar-nos de Deus ou, o que é intolerável, afastar em nome de Deus. A missão é para todos, a missão é para sempre e — pormenor nada despiciendo — a missão é para já.
Note-se, a este propósito, a fórmula que o pai usa: «Filho, vai hoje trabalhar para a vinha». Este hoje não é apenas um dia com 24 horas. Este hoje aponta para o tempo inteiro da nossa vida. Envolve, portanto, todos os hojes e cada hoje: o hoje deste dia também.
Parafraseando uma conhecida máxima popular, dir-se-ia: «Não adies para amanhã a missão que podes — e deves — realizar hoje». É que a missão, além de necessária, é urgente; pertence ao prioritário, ao inadiável.
C. Nem tudo se resolve com palavras
5. Entretanto, estes dois filhos não são somente duas pessoas diferentes; corporizam sobretudo duas atitudes distintas diante da urgência da missão. Em ambos os casos, o que vem pelos lábios não corresponde ao que sobrevém na vida. Um inicialmente recusa, mas depois aceita (cf. Mt 21, 29). O outro inicialmente aceita, mas depois recusa (cf. Mt 21, 30). Ou seja, promete, mas não cumpre. Em síntese, quem faz a vontade do Pai não é quem fala, é quem faz.
Neste ponto, tocamos uma lacuna muito pertinente na vida da Igreja. Com efeito, há por vezes a tentação de tudo resolver verbalmente, de tudo resolver com palavras. Jesus estava a discutir com pessoas que eram peritas em falar, em dizer. O mal é que se tratava de um dizer sem fazer e de um fazer contrário ao dizer. Daí o apelo que o Mestre nos deixa: «Fazei o que eles dizem, mas não o que eles fazem»(Mt 23, 3)
6. Logo no Sermão da Montanha, Jesus tornara tudo muito claro: «Nem todo aquele que Me diz “Senhor, Senhor” entrará no Reino dos Céus, mas somente aquele que faz a vontade do Meu Pai que está nos Céus»(Mt 7, 21). Nem todo o que fala de Deus, faz a vontade de Deus. O discurso dos lábios conta pouco se não encontra eco no discurso da vida. Como notou González-Faus, Jesus falava de Deus deixando transparecer Deus.
Grave não é dizer. Grave é quando o fazer contradiz o dizer. Dizer só é importante quando se diz o que se faz e se faz o que se diz. É por isso que, devendo obviamente respeitar o que as pessoas dizem, devemos estar mais atentos ao que as pessoas fazem.
D. Os que estão atrás são puxados para a frente
7. Sto. António, que estava saturado de palavras sem conteúdo, gritou: «Cessem as palavras e falem as obras. De palavras estamos cheios, de obras vazios». O Padre Giuseppe de Lucca alinhava pelo mesmo registo: «A melhor maneira de dizer as coisas é fazê-las». É que, como observou Abraham Lincoln, as «acções falam mais alto que as palavras». Por tudo isto, não admira que S. João exorte a que não amemos com palavras nem com a língua, mas com obras e em verdade (cf. 1Jo 3, 18).
O grande drama é que, quase sempre, as palavras dizem uma coisa e as acções mostram outra coisa, radicalmente oposta. Acontece que, meditando neste pedaço do Evangelho, fácil é concluir que os que dizem e não fazem são os que se julgam superiores. Já os que fazem, embora o não digam, são pessoas mal vistas e até malquistas. Mas é nestes últimos que Jesus se revê: não pelo que fizeram até então, mas pelo que se dispõem a fazer a partir de então. Eles são, embora não presumam. Já os outros presumem, mas não são. E necessário não é presumir; é ser.
8. Apesar de tudo, Jesus não exclui ninguém, nem sequer aqueles que se auto-excluem. O Evangelho não é fatalista. O Evangelho é a negação de todo e qualquer fatalismo. Dizia Almeida Garrett — e o povo gosta de repetir — que «o que tem de ser, tem muita força». Mas Deus tem uma força ainda maior. Trata-se de uma força que nem de força precisa. É a força da bondade, da misericórdia e da compaixão.
As coisas deixam de ser lineares quando Deus entra em campo. Os que parecem excluídos afinal também são envolvidos. Os que parecem preteridos afinal até são os preferidos. E os que são atirados lá para trás até são puxados para a frente. Em suma, muitas surpresas tem Deus para nós. Jesus é a revelação do Deus das «novas oportunidades», do Deus de todas as oportunidades.
Nem os que se recusam a trabalhar na vinha são excluídos do Reino de Deus. Na verdade, Jesus não diz que os sumos sacerdotes e os anciãos do povo estão excluídos do Reino do Deus. Diz, sim, que os publicanos e as mulheres de má vida vão à frente deles (cf. Mt 21, 31). E vão à frente deles não por continuarem com a sua vida, mas por estarem dispostos a mudar de vida.
E. Precisamos de vitamina C, de «vitamina Cristo»
9. O mal de muitos é acharem que não precisam de mudar. Mudar é para os outros. Os outros é que estão errados. Hoje como ontem, não falta quem pense que até Deus está errado. Que está errado por ser misericordioso, por dar uma oportunidade ao pecador que «se afaste do mal»(Ez 18, 27). Hoje como ontem, não falta quem considere a misericórdia um sinal de fraqueza. E, no entanto, como reconhecíamos há momentos na oração colecta, a maior prova do poder de Deus está quando Ele perdoa e Se compadece. Não espanta, pois, que o salmista suplique: «Lembrai-Vos, Senhor, das Vossas misericórdias»(Sal 24, 6). Só que Deus lembra-Se. Deus lembra-Se até quando nós nos esquecemos, até quando nós O esquecemos.
Por tudo isto, é urgente mudar. É urgente que mudemos para que a nossa maneira de proceder se aproxime da maneira de proceder de Deus. Como explica S. Paulo, Cristo Jesus, pelo caminho da humildade, vem ao encontro do homem sem deixar de ser divino (cf. Fil 2, 6-8. Pelo mesmo caminho da humildade, o homem é chamado a ir ao encontro de Deus sem deixar de ser humano.
10. Deus não nos desumaniza. Pelo contrário, é Deus quem mais nos humaniza e fraterniza. É Deus quem mais faz de nós humanos e fraternos. Em Cristo, Deus venceu as distâncias que nos separavam. É a humildade que nos aproxima de Deus. E é a humildade que nos aproxima uns dos outros, sem preconceitos nem censuras. Procuremos, então, ter «os mesmos sentimentos que havia em Cristo Jesus»(Fil 2, 5), que era «manso e humilde»(Mt 11, 29). Desse modo, ficaremos unidos e nada faremos por rivalidade nem por vanglória (cf. Fil 2, 3). Nada faremos a pensar nos nossos interesses e tudo faremos a pensar nos interesses dos outros (cf. Fil 2, 4).
No fundo, o maior adversário da nossa felicidade pode estar dentro de nós. O egoísmo é uma doença que cega, uma doença que tolhe, uma doença que pode matar. Só venceremos o egoísmo com muitas doses de vitamina C, de «vitamina Cristo». É Cristo que nos ensina a olhar para os outros como eles são. Os outros não são menos que nós. São outros além de nós e são outros connosco. Cristo também está neles. Em Cristo, todos estamos unidos a todos!