1. Já estamos na Quaresma, um tempo na vida, uma oportunidade para a vida.
Numa primeira (e rápida) leitura, ela é o retrato mais fidedigno da nossa existência. De facto, não é só na Quaresma que muitos fazem penitência.
O quotidiano de muitos assemelha-se a uma grande, a uma interminável, penitência. Há quem faça jejum não apenas na Quarta-Feira de Cinzas e na Sexta-Feira Santa, mas todos os dias do ano.
Há casas onde o alimento não chega. Há lares onde o alimento não entra.
A Quaresma leva-nos a pensar que vivemos num mundo tecido de injustiças e semeado de gritantes desigualdades.
Para muitos, a penitência ainda pode ser uma opção. Para muitos outros, porém, é uma imposição, uma condenação.
2. A Quaresma recorda-nos que alguém (Jesus) tomou partido e assumiu a condição dos mais desfavorecidos.
A Quaresma avisa-nos de que Deus não Se conforma com a situação actual do nosso mundo.
Deus não aposta na manutenção, mas na transformação. O que é dito a cada um no início deste tempo santo («arrependei-vos») é repetido a todos os membros da humanidade: «mudai de vida, de conduta, de paradigma».
Há uma sabedoria muito grande na proposta quaresmal. A mudança no mundo tem de começar pela transformação de cada pessoa que existe no mundo.
Porque cada pessoa é, como dizia Gregório de Nissa, um «pequeno mundo», o que se passar em cada homem repercutir-se-á no mundo inteiro. Daí o imperativo de Gandhi: «Sê tu mesmo a mudança que queres para o mundo».
Há ideologias que propugnam a revolução a partir das estruturas. E é claro que estas também têm de ser transformadas. Mas só mudando o interior de cada pessoa, é possível alavancar uma mudança mais vasta, no mundo.
3. A Quaresma permite-nos ver que, afinal, somos uns permamentes nómadas. No fundo, não somos. Tornamo-nos. Estamos sempre em viagem. Estamos sempre em devir.
A questão que se coloca é se, nesta viagem, nos tornamos melhores. A experiência não nos traz especiais novidades nem boas notícias.
É sabido que, por si mesma, a inércia nada resolve. Tudo tem de radicar na vontade, na opção.
A Quaresma é um imperativo de reflexão. É um dado que estamos diferentes. Será que, diferentes, estaremos melhores?
Um dia, Leonardo Boff perguntou ao Dalai Lama qual era, para ele, a melhor religião. Quem estivesse à espera de que a resposta fosse «o Budismo» ficou, no mínimo, surpreendido.
«A melhor religião - respondeu o mestre tibetano - é aquela que faz de ti uma pessoa melhor».
É claro que o problema não pode ser colocado apenas do lado da proposta. Também tem de ser remetido para o lado do receptor. Mas subsiste a pertinência da interpelação.
4. O ambiente de recolhimento, próprio da Quaresma, não é somente uma ajuda à meditação pessoal. É igualmente (e bastante) uma oferta de sentido.
A reflexão ajudar-nos-á a ver como é que tem sido a nossa conduta em relação a Deus e em relação ao próximo. Jesus fala-nos de Deus como Pai e do ser humano como Irmão.
Os dois maiores eixos do tempo quaresmal são a espiritualidade e a solidariedade. Somos convidados a alicerçarmos uma vida descentrada ou, melhor, recentrada em Deus e na Humanidade.
É por isso que a Quaresma, sendo uma época que nos lembra muito o tempo presente, também nos ajuda a vislumbrar o que pode (e deve) ser o tempo futuro: um tempo de partilha, um tempo de doação, um tempo de fraternidade, um tempo de luz.
A estrutura do tempo quaresmal permite-nos perceber como, por vezes, é preciso bater no fundo para começar a subir.
No fundo de nós, acolhamos o melhor que Deus semeou no mundo e nas pessoas. Demos uma oportunidade à vida.
Procuremos escovar a poeira do egoísmo que nos infecta. Conjuguemos o verbo dar na forma transitiva, mas sobretudo na forma reflexa. Ou seja, demos algo de nós e aprendamos a darmo-nos a nós!
Não nos resignemos ao que somos. Tornemo-nos melhores pessoas, mais tolerantes, mais fraternas, mais humanas, mais felizes!