1. Atravessados em filigrana por uma tumultuosa contradição, os nossos tempos são tecidos, em simultâneo, por um altruísmo ardente e por um individualismo feroz.
Será possível explicar?
2. As distâncias físicas como que foram anuladas. Vivemos, cada vez mais, ao lado uns dos outros.
Sabemos — ou presumimos saber — tudo o que se passa com os outros. Estamos perto de muitos e as vias de comunicação colocam-nos não longe de todos.
3. A passagem de uma civilização de pendor rural para uma civilização de teor urbano leva-nos a estar rodeados de ajuntamentos e a posicionarmo-nos constantemente em multidão.
E é assim que apontamos o dedo quando um não vai ao encontro de muitos. Mas não nos preocupamos quando muitos se recusam a ir ao encontro de um.
4. Esquecemos que o outro não tem valor quando é multiplicado por muitos.
O valor do outro consiste em ser pessoa, em ser único, irrepetível.
5. Por um lado, parece haver uma espécie de alterlatria, de culto do outro. Só que nem sempre este reconhecimento do outro convive pacificamente com um genuíno respeito pela identidade do outro, pela maneira de ser do outro.
Ou seja, queremos o outro à nossa medida. Afinal, estamos muito perto, mas não nos sentimos muito próximos.
6. Se repararmos no grande ícone da nossa época — as manifestações —, notaremos que é praticamente impossível encontrar uma multidão totalmente unânime.
É raro haver uma multidão que se dissolva sem um foco de violência ou um vulcão de apupos.
7. Hoje em dia, as multidões juntam-se mais facilmente contra alguém do que por alguém.
Flávio Paranhos adverte-nos para o perigo de uma alterfobia, que, no limite, leva a ver no outro um invasor, um intruso, um colonizador.
8. As relações que mantemos com os outros continuam a ser, tendencialmente, de controlo e de dominação.
Acresce que este impulso não se limita ao exterior. Muitos são os grupos que deixam de se preocupar com o adversário comum e começam a dividir-se, a desentender-se e até a agredir-se!
9. Acontece que uma comunidade terá dificuldade em subsistir quando se desagrega, quando exclui em vez de incluir.
O progresso terá de passar, por isso, por uma harmonia maior com o outro.
10. É claro que se trata de um processo, longo. Difícil. E muito dificultado.
Mas esse momento há-de chegar. O melhor ainda está para vir!