1. Não é só de dinheiro que temos carência. Há bens muito mais importantes que estão em débito. A vergonha, por exemplo.
A vergonha não é entusiasmante. Mas pode ser muito proveitosa.
2. Recordo um mestre que exortava que nem se deve ter vergonha a mais nem vergonha a menos.
Mas, entre um extremo e outro, preferia que se tivesse vergonha a mais.
3. Frei Benito Feijoo entendia que «a vergonha é um fosso que a natureza coloca entre a virtude e o vício».
E George Bernard Shaw achava que «um homem é tanto mais respeitável quanto mais numerosas são as coisas das quais se envergonha».
4. Neste sentido, bom seria que a vergonha surgisse não apenas depois de certas acções. Mas que aparecesse também antes de certos actos.
Fácil, hoje em dia, é perder a vergonha. Fundamental é reencontrar a vergonha perdida.
5. A propósito, diz uma conhecida parábola que havia três irmãos (a água, o nevoeiro e a vergonha) que, um dia, resolveram apartar-se.
Para facilitarem um eventual reencontro, acertaram o lugar onde cada um estaria. A água andaria pelo fundo das terras e o nevoeiro pelos vales. O problema era a vergonha. Quem a perdesse, dificilmente a encontraria.
6. Acresce que a falta de vergonha provoca danos irreparáveis. É que, como alertou Thomas Fuller, «quem não tem vergonha não tem consciência».
A vergonha, na medida justa, é uma espécie de freio do instinto e de uma nascente da ponderação, da autocrítica.
7. A vergonha não ajudará a fazer muito de bom. Mas, pelo menos, pode impedir que se faça muito de mau.
São muitas as vezes em que deixamos de fazer algo de bom porque uma força nos tolheu. Mas também são frequentes as situações em que não fizemos algo de mau porque uma força nos bloqueou.
8. Afinal, o pudor também é um valor.
Santo Agostinho, confessando os desmandos da sua juventude, disse que chegou a ter vergonha de não ser desavergonhado.
9. Campos e Cunha alerta para a ausência de vergonha que percorre a vida cívica. «Há muita gente com vergonha da falta de vergonha que por aí impera».
O problema é que, cada vez mais, os poderes, em sentido lato, tendem a ser dominados «por pessoas que não sentem nem têm vergonha».
10. Em conclusão, muita vergonha não fará bem. Mas alguma vergonha não traz nenhum mal.
E previne grandes males!