1. Tudo, nesta vida, tem uma causa. A causa da presente crise é a perda do sentido do outro.
A revolução individualista desencadeou uma cultura egocêntrica e uma mentalidade egolátrica. O eu está no centro ou em cima. O outro encontra-se atrás ou em baixo.
2. É certo que nunca estivemos tão perto. Mas também é verdade que nunca nos teremos sentido tão distantes. O mal não é ser diferente. O mal é passar a ser indiferente.
Infelizmente, estar perto nem sempre costuma equivaler a ser próximo. Afinal, há distâncias que nem a pouca distância consegue eliminar.
3. O outro tende a ser visto como espectador e instrumento da afirmação do eu.
O eu parece gostar de se afirmar perante os outros e também à custa dos outros.
4. No fundo, cada eu sente-se detentor de todos os direitos. Cada outro é encarado como portador de todos os deveres.
Enfim, aos outros mostramos a cara, mas, ao mesmo tempo, viramos as costas.
5. O problema do nosso país não é conjuntural; é estrutural. Os outros não nos ajudam. Estão a lucrar com a sua ajuda.
Mas será que, em Portugal, estaremos a pensar uns nos outros? A doença dos outros não será também a nossa enfermidade?
6. Eis a síntese do nosso tempo: tanta gente perto; tanta gente só!
Todos vivem ao lado de todos. Mas ninguém parece saber de ninguém. Aos olhos de muitos, será que alguém é mais que ninguém?
7. É óbvio que, no tropel de mudanças que estão em curso, o eu ganha muito. Mas arrisca-se a perder o mais importante.
A lógica do lucro valoriza a transacção comercial e subestima o serviço gratuito.
8. Ainda há muitos que servem. Mas são cada vez mais os que se servem. O «self service» é uma prática e é sobretudo um sinal.
Servir está a ser um verbo cada vez mais reflexo. Para não poucos, servir é, acima de tudo, servir-se.
9. É urgente perceber que nada somos sem os outros. Inferno não são os outros. Inferno é viver sem os outros, contra os outros.
Não é incorrecta a máxima de Descartes: «Penso, logo existo». Mas é mais acertada a advertência de Sampaio da Nóvoa: «Penso nos outros, logo existo».
10. De facto, não existo plenamente quando penso. Só existo verdadeiramente quando penso nos outros.
Existir é não desistir. É nunca desistir dos outros.