1. Não se pense que Deus só está presente na vida daqueles que O confessam. Ele está também — e bastante — no coração dos que O negam.
Entre a fé e o ateísmo, há uma simetria na experiência e, ao mesmo tempo, uma assimetria na direcção que ela acaba por tomar.
É por isso que Miguel Torga bem pode servir de fonte de inspiração para sintetizar a trajectória (a)teologal de José Saramago: «Deus. O pesadelo dos meus dias. Tive sempre a coragem de O negar, mas nunca a força de O esquecer».
Saramago nunca esqueceu Deus. Mesmo (sobretudo?) quando se assumiu como ateu.
E o certo é que foi dos escritores que, nos últimos tempos, mais concorreram para a permanência da questão de Deus como questão central na literatura e, mais vastamente, na vida pública.
Acerca de Deus, como alertou Xavier Zubiri, o mais difícil não é descobri-Lo; é encobri-Lo.
Se quisesse encobrir Deus, o ateu — sublinha Karl Rahner — «não só teria de esperar que essa palavra desaparecesse por completo, mas também deveria contribuir para esse desaparecimento, guardando completo silêncio, abstendo-se inclusive de se declarar ateu».
2. No fundo, José Saramago não deixava de ser crente. Acreditava que Deus não existe. Poderá alguém garantir mais do que isto?
A crença não é um exclusivo da atitude teísta. Ela abrange também (e bastante) a posição ateísta.
André Comte-Sponville, que se considera ateu, assegura que o ateu só pode dizer que acredita que Deus não existe.
É que, como nota Hans Küng, «se todas as objecções dos ateus tornam questionável a existência de Deus, não chegam, contudo, a tornar inquestionável a Sua não-existência».
Xavier Zubiri assinalava que a relação com Deus pode fazer-se pela via da afirmação, pela via da negação e até pela via da indiferença.
Nesta diversidade, os pontos de contacto não escasseiam. Miguel de Unamuno percebeu isto muito bem quando rubricou a célebre frase: «Nada nos une tanto como as nossas discordâncias».
A indiferença não foi, seguramente, a via seguida por José Saramago.
Deus nunca lhe foi indiferente. Pelo contrário, manteve com Ele uma relação intensa, embora tumultuosa.
3. Para Saramago, o Homem relativamente a Deus é como o murmúrio de uma ausência: «Deus é o silêncio do universo e o ser humano o grito que dá sentido a esse silêncio».
Nos Cadernos de Lanzarote, chegou a escrever que «a existência do Homem é o que prova a inexistência de Deus».
Mas não há tantos que fazem exactamente a prova do contrário? Não são tantos os que encontram no Homem a maior epifania de Deus?
No passado, Gregório de Nissa falava do Homem como «pequeno Deus» e, mais perto de nós, Xavier Zubiri, apontava o ser humano como «maneira finita de ser Deus».
Aqui, prova funciona não como evidência, mas como percepção.
A discussão jamais estará concluída. Como refere Philippe van den Bosch, «não há qualquer prova racional da inexistência de Deus. Não há senão convicções individuais e pressupostos».
4. O que há a destacar é a persistência da procura e a insatisfação do encontro que, por sua vez, desencadeia uma nova procura.
Nesta inquietação não laboram apenas os que negam. É conhecido o convite de Santo Agostinho: «Procuremos como quem há-de encontrar e encontremos como quem há-de voltar a procurar».
O ateu é alguém que não descansa na procura. É inquieto e inquietante. As suas interpelações não anulam a fé. Espevitam-na e ajudam ao seu aprofundamento.
Até o ateu mostra que Deus é uma questão humana. Deve ser também uma questão humanizante, fraternizante.
Nem sempre é o isso o que se vê. Deus é vítima de tantas imagens desfocadas e de tantos discursos distorcidos.
Em qualquer caso, Ele está em todos. Nos que dizem acreditar. E nos que, não dizendo, acabam por não estar longe d’Ele!