1. Muita gente se espanta por, apesar da crise, as festas se manterem com apreciável pujança e volumosos orçamentos.
Pode haver uma ligeira descida nos gastos, mas na substância não se notarão muitas oscilações.
2. É comum responder-se que o povo tem necessidade de festas. E, numa altura como esta, tal necessidade será ainda mais intensa.
O quotidiano é demasiado duro. Uma breve descompressão no Verão será, por isso, bem recebida. Daí os divertimentos e até os excessos «à custa» da Virgem Maria e dos Santos.
3. Acontece que, em tempos recuados, o quadro era semelhante. Na Idade Média, apesar da rigidez dos costumes, havia festas que ultrapassavam, em muito, os excessos actuais.
Basta pensar na chamada «festa dos tolos»(festum fatuorum). Decorria nos últimos quatro dias do ano e incluía não só actos profanos mas também a paródia de actos sagrados.
Havia clérigos que jogavam aos dados em cima do altar, envolviam-se em concursos de bebida, entoavam orações com arrotos, brincavam aos sermões, viravam os livros sagrados de pernas para o ar ou rezavam a vegetais. E mais não digo porque até eu me escandalizei quando, pela primeira vez, tomei conhecimento destes factos.
4. O mais curioso é que a comunidade intelectual dava uma justificação (quase metafísica) para estes desmandos.
Com efeito, em 1445, a Faculdade de Teologia de Paris defendia que era importante que «a loucura, que é a nossa segunda natureza, se pudesse esgotar livremente pelo menos uma vez por ano».
Invocava-se, de seguida, um termo de comparação que permitia extrair um argumento poderoso: «Os barris de vinho rebentam se não os abrimos de vez em quando para entrar algum ar». Surge, então, a conclusão: «Todos nós, homens, somos barris mal montados e é por isso que permitimos a loucura em determinados dias para, no fim, podermos voltar com maior zelo ao serviço de Deus»!
5. Tantos séculos depois, será que mudamos? Será que crescemos?
Será que a loucura continuará a ser a nossa segunda (ou, como alguns julgarão, a primeira) natureza? Será que a alegria não pode ser emoldurada com um manto de compostura e comedimento?
Sendo os excessos emocionalmente tão desgastantes e financeiramente tão dispendiosos, porquê todo este investimento neles?
6. Os programas de muitas das nossas romarias mostram como se passa, num horizonte temporal muito breve, de um acto de oração a uma noite inteira de diversão.
Para muitos, existe uma unidade entre aquilo que, à partida, é deveras contrastante. Supostamente, tudo é em honra do santo padroeiro: não só a Missa e a procissão, mas também o arraial, a farra e as bebidas. Para muitas pessoas, tudo faz parte da única festa.
7. Impressiona, de facto, que não haja o mais leve senso crítico. E que, na maioria das festas, a aposta na diversão corresponda a um esquecimento da solidariedade. Toda a gente parece muito satisfeita.
Só que a eficácia da oração não está na satisfação. Está, sim, no compromisso.
Aliás, já D. Óscar Romero apontava o critério decisivo acerca da qualidade da oração: «Como é que eu trato os pobres? Porque é neles que Deus está».
8. O compromisso com os pobres desponta, pois, como o grande cinzel da fé. A oração vacina-nos ante o perigoso (mas tão insinuante) contubérnio com os poderosos.
A oração é encontro com o grande Pobre de Nazaré. Do Pobre para os pobres — eis, em síntese, o movimento que se espera de todo o crente!