1. Éramos cinco naquele dia. Há vinte e três anos. Já há vinte e três anos. Completam-se hoje, 12 de Agosto.
Parece que foi ontem que tudo aconteceu. Mas não foi ontem. Foi num dia como o de hoje, em 1989, o ano em que uns muros caíram e outros muros se ergueram.
Foi o ano em que se fez história, com a queda do Muro de Berlim, chamado também o Muro da Vergonha.
E era também com alguma vergonha que nós, os cinco, avançávamos. Sabíamos que aquele passo iria transformar — de uma vez para sempre — as nossas vidas.
A partir daquele momento, daquela tarde, íamos deixar de ser nós. Íamos deixar de ser nossos. Passávamos a ser d’Ele. Passávamos a ser vossos. De todos. Para todos.
Era tudo tão grande, tão denso, tão profundo e nós tão pequenos! Mas Ele lá sabe. Passou pela nossa vida. Seduziu-nos. Convenceu-nos. E nós passámos a andar sempre com Ele (cf. Mc 3, 14).
2. Ficámos lívidos de emoção quando nos prostrámos na Catedral, completamente cheia. Sentimos mesmo o Espírito Santo vir até nós. As palavras e as mãos do senhor D. António de Castro Xavier Monteiro involucravam algo indizível que nos era transmitido.
Ser ordenado padre pelo senhor D. António foi uma graça que nunca saberei agradecer devidamente.
Nele vi sempre um pai, um pai afável, carinhoso. Tanto empolgava multidões como era capaz de penetrar no íntimo mais recôndito de uma pessoa.
Amanhã, 13 de Agosto, faz doze anos que Deus o chamou. Por que não pensar numa rua com o seu nome?
Apesar de contido, amava Lamego. Deu, aliás, sobejas provas desse amor.
Sendo Arcebispo de Mitilene, era a segunda figura do Patriarcado de Lisboa e, nessa medida, potencial sucessor de D. Manuel Gonçalves Cerejeira.
Foi ele que escolheu vir para Lamego. Nunca mendigou recompensas. Mas até por isso, por esse despojamento, não mereceria uma distinção?
Uma rua até é bem pouco para quem tanto merece!
3. Naquela tarde de 12 de Agosto, notávamos que aquela gente toda não estava só ao nosso lado nem à nossa beira. Estava dentro de nós.
Aqueles sorrisos, entremeados com lágrimas, arrebatavam as entranhas do nosso ser. Para ser padre, não é preciso tanto ter uma grande inteligência. É fundamental, acima de tudo, ter um grande coração. Um coração simples. Como o d’Ele. Como o de Jesus.
Naquela tarde, sentimos que hipotecámos as nossas vidas. Tornámo-nos — conscientemente — uns alienados.
Deixávamos de ter vida própria. Agora, era tudo d’Ele. Tudo para Ele. Para Jesus. Que felicidade!
Sentimo-nos envolvidos, acarinhados. O melhor da Igreja foi sempre Deus e foi sempre o Povo.
O Povo nunca desilude, nunca desencanta. Pelo contrário, o Povo consegue sempre reencantar-nos quando o encanto fenece ou quando a dor nos visita.
É o Povo simples e bom o primeiro que nos estende a mão, o primeiro que não nos deixa cair, o primeiro que nos adopta como seus. Não somos de ninguém para sermos de todos, para todos!
4. Neste mesmo dia 12 de Agosto, mas de 1815, outro padre era ordenado. Ninguém o acompanhou. Nem a família. Nem qualquer colega.
Calcorreou, sozinho, cem quilómetros a pé. A mesma distância percorreu no regresso sob o sol escaldante de Agosto.
O Santo Cura d’ Ars começou o seu sacerdócio sob o escaldante calor de Agosto. Consumou o seu sacerdócio sob o mesmo escaldante calor de Agosto, já que faleceu a 4 daquele mês, em1959.
Também D. Manuel Martins, o bispo dos pobres, foi ordenado padre a 12 de Agosto, de 1951.
Leça do Balio, sua terra natal, engalanou-se. Iniciava-se ali uma vida cheia, uma vida em cheio, uma vida para Deus e para os pobres.
Dedicado aos mais pobres foi igualmente D. Hélder Câmara. Recebeu a ordenação sacerdotal em 1931, a 15 de Agosto. Em 1942, também a 15 de Agosto, era ordenado padre o bispo que me ordenou a mim: o querido senhor D. António.
Foi nesse dia que, em 1989, celebrei a Missa Nova. Com a minha família, os meus colegas e os meus amigos. Na minha querida terra natal. Aonde os meus pés vão poucas vezes. Mas donde o meu coração nunca sai!