1. Os tempos não correm fagueiros para a moderação nem, obviamente, para os moderados.
No mundo e em quase todos os sectores da vida, são os extremos que predominam, agredindo-se e correndo o risco de (mutuamente) se anularem.
2. Não foi por mero ornamento retórico que Eric Hobsbawm qualificou a nossa época como sendo a «era dos extremos».
Os extremos são sedutores pela (aparente) clarificação. Mas tornam-se ameaçadores pela (perigosa) simplificação.
3. Os extremos fomentam o sectarismo, o pensamento redutor e o comportamento excludente. Estigmatiza-se a moderação como sendo incapacidade de optar. Diria que não necessariamente.
A moderação nasce da capacidade de fazer a síntese entre diferentes e de operar a convergência entre contrários.
4. A nomeação de Gerhard Muller para a Congregação da Doutrina da Fé parece constituir uma aposta neste encontro entre posições diversas.
Além de ser um teólogo renomado (com uma amplíssima obra publicada), tem pautado a sua trajectória por uma apreciável dose de sensatez.
5. A missão de que foi incumbido costuma ser designada como «guardiã da ortodoxia». A sua trajectória revela que essa ortodoxia, que ele obviamente pretende guardar, nunca é separável da ortropraxia, que ele sempre mostrou priorizar.
A sua proximidade com Gustavo Gutiérrez (um dos expoentes da Teologia da Libertação) indica que uma ortodoxia só é ortodoxa quando integra a ortopraxia.
O recto pensar terá de abranger sempre o recto agir. Por isso é que Gerhard Muller diz que «a Teologia de Gutiérrez é ortodoxa porque é "prática"».
6. E até neste ponto o percurso do novo Prefeito da Congregação da Doutrina da Fé é iluminador.
Com efeito, Gerhard Muller é amigo pessoal de Bento XVI, tendo fundado um instituto para publicar 16 volumes de escritos do Sumo Pontífice.
E, ao mesmo tempo, também é amigo pessoal de Gustavo Gutiérrez, de quem aliás foi aluno. Em conjunto escreveram o livro «Do lado dos pobres - a Teologia da Libertação», publicado em 2004.
Em 2008, Gerhard Muller defendeu o movimento como uma interpretação correcta dos ensinamentos da Igreja sobre os pobres, e não um apelo à revolução, argumento central da crítica do então cardeal Joseph Ratzinger.
7. Habitualmente, preocupamo-nos com os erros doutrinais. E tendemos a negligenciar a falhas vivenciais.
O ortodoxo não é aquele que aprende mais doutrina, mas aquele que procura viver melhor a doutrina que aprende.
As duas dimensões são importantes. Postulam-se.
8. Uma síntese não é apenas uma condensação de posições diversas. É, acima de tudo, um esforço de encontro entre visões diferentes.
Uma síntese acaba por ser movimento que vai da tese para a antítese. A síntese não é, pois, o que vem após a tese e a antítese, mas o que está entre a tese e a antítese.
9. Abrir pontes onde costuma haver muros é uma missão espinhosa, mas é igualmente um trabalho estimulante. É importante que se defendam pontos de vista próprios. Mas também é salutar que não falte abertura às posições dos outros, ainda que pareçam opostas.
A «ética da responsabilidade» não elimina a «ética da convicção». E uma convicção de que somos portadores desde os começos é que as «sementes do Verbo» estão disseminadas por todos os homens.
10. Na procura da verdade, há certamente correcções a fazer e precisões a efectuar. Mas tais correcções e precisões devem surgir mais como um serviço fraterno do que como uma sentença impiedosa.
No tempo, todos participamos da condição de «homo viator». Ainda não atingimos a meta. Ainda somos (todos) viandantes, peregrinos de uma pátria cujos vislumbres nos vão sendo oferecidos.
11. Numa Igreja que se vê como um corpo (assim no-la apresentou S. Paulo), todos são portadores de um carisma, de um dom. Os carismas e os dons não são estanques. Circulam em todos e interpelam-se entre si. A verdade é sempre para procurar. Alguma vez será para possuir? Necessário não é possuir a verdade, mas deixar-se possuir pela verdade.
12. Haver alguém que apela para uma síntese é uma bênção. E uma oportunidade para que não descuremos a prática. Sobretudo na defesa dos mais pobres e dos oprimidos.
Mantenhamos, por isso, a indispensável coerência nos princípios e não desleixemos o inadiável compromisso com a sua aplicação.
Quem não ama o próximo como pode pretender amar a Deus?
13. Não separemos o que Deus uniu. Foi Deus que uniu a verdade e o amor, a doutrina e a caridade. Neste caso, querer menos que tudo é querer nada!