1. Na vida, não basta haver caminhos. É necessário que, sem tutelas, haja uma indicação clara acerca dos caminhos.
Sem indicações, não sabemos para onde os caminhos nos levam. Todos são equivalentes. A indecisão será inevitável e o desnorte total.
O mundo de hoje é marcado, em todos os domínios, pelo pluralismo. O que falta é uma bússola, um critério, uma orientação, uma regra, uma referência, em suma, um cânone. Assim, a mesma coisa pode ser excelente ou execrável, conforme a vontade de cada um.
2. A música clássica, por exemplo, é um primor para os peritos e um tédio insuportável para as multidões.
Estas idolatram cada vez mais o espectáculo e tendem a valorizar o que tem ritmo, o que provoca agitação.
É por isso que, numa época que esvaziou quase todos os cânones, o espectáculo desponta como o padrão mais destacado.
3. Aliás, nem o fenómeno religioso escapa a este enquadramento. Parte do princípio de que as iniciativas, para obterem adesão, têm de acolher alguma cedência ao espectáculo.
E é assim que, em vez de se apostar na alternativa, avulta a redundância. Prefere-se a repetição à diferença.
Certos sectores procuram mais deslumbrar do que esclarecer, empenhando-se mais em emocionar do que em aprofundar.
Quantas vezes já não ouvimos descrever certos actos e determinados intervenientes com estes qualificativos: «Esta procissão foi um espectáculo!» ou «Este padre é mesmo um espectáculo!».
4. Estamos, pois, em plena «civilização do espectáculo», título aliás do mais recente ensaio de Mario Vargas Llosa, Prémio Nobel da Literatura.
Não é difícil descortinar a causa de tudo isto. Actualmente, a cultura deixou de estar nas mãos de uma elite. A cultura globalizou-se, democratizou-se; mais, massificou-se.
Praticamente todos têm acesso ao seu consumo. Mas será que todos têm a preocupação de apurar minimamente um critério?
5. Nos tempos que correm, deve haver poucos conceitos tão elásticos como cultura. Nela cabe o mais erudito e o mais popular, o mais elaborado e o mais rudimentar, o mais sublime e o mais boçal.
Provavelmente, os maiores aplausos vão para o mais prosaico. Na maior parte dos casos, a quantidade vai num sentido oposto ao da qualidade.
6. É por isso que, havendo uma grande oferta cultural, subsiste um enorme mal-estar em torno do universo da cultura.
Vargas Llosa rebela-se contra a corrente dominante, que identifica a cultura com «todas as manifestações da vida de uma comunidade». A indeterminação é tal que a cultura pode chegar a ser entendida «apenas como uma forma agradável de passar o tempo».
O resultado é que «tudo se iguala e unifica até ao extremo de uma ópera de Verdi, a filosofia de Kant, um concerto dos Rolling Stones e uma actuação do Cirque du Soleil se equivalerem». Estamos no domínio da cultura ou do mero divertimento?
7. Como quase tudo funciona em termos de espectáculo, é natural que também quase todos se posicionem em termos de encenação.
A vida torna-se um espectáculo para si própria e uma espectadora de si mesma. Ao enriquecimento da pessoa segue-se um embotamento do humano.
As escolhas são comandadas por um processo de futilização, pelo qual o mais medíocre é bem capaz de ser o mais apreciado.
8. Outrora, os critérios vinham das elites, cuja autoridade era reconhecida e incorporada. Hoje, a revolução individualista impõe que cada seja a referência definitiva para si mesmo.
É sempre salutar o exercício da liberdade pessoal. Mas a consequência, neste caso, é um subjectivismo quase total, sem qualquer ponta de objectividade.
9. O desabar das hierarquias leva a que não haja o menor escalonamento no campo da qualidade. É possível que a obra mais valiosa esteja ao lado do produto mais sofrível.
A ausência de um cânone implica que não se distinga o melhor do somente aceitável e do francamente mau. O maior talento e o mero aprendiz podem confundir-se «porque ambos são vítimas de mecanismo como os da publicidade, que, no fundo, detém a última palavra».
Em último caso, é a publicidade (e não a qualidade) que determina o êxito.
10. O que mais assusta é o clima de conformismo que se verifica, quando é suposto que a cultura forneça uma fonte de inconformismo e lucidez.
É por isso que as ditaduras abominam a criação cultural. Vargas Llosa recorda que o primeiro acto do nazismo, assim que chegou ao poder, foi queimar livros em frente da Universidade Humboldt.
11. Na hora que passa, a cultura está a ser posta em causa não pelo autoritarismo, mas pela frivolidade. Ela só sobreviverá, segundo Vargas Llosa, «com uma vida espiritual intensa, que mantenha viva uma hierarquia de valores respeitada pelo corpo social».
É por isso que, sendo o conhecimento importante, a cultura é «algo anterior ao conhecimento». Trata-se de «uma propensão do espírito, de uma sensibilidade e de um investimento na forma que dá sentido ao próprio conhecimento».
12. Daí que a cultura não consista na quantidade de conhecimentos, mas na qualidade dos conhecimentos.
Uma vez mais sobressai o papel de uma educação que congregue aqueles que deveriam ser os seus dois grandes objectivos: criar bons profissionais e ajudar a preencher os vazios no campo espiritual!