A vida é uma lição. E, nela, os melhores professores são os problemas.
É sempre bom condimentar um fundamental optimismo da vontade com um cauteloso pessimismo da inteligência. Ou seja, é importante acreditar no melhor, sem deixar, porém, de estar prevenido para algo que possa correr mal.
Sucede que muitos gastam como se nunca houvesse crise. É preciso poupar como se ela pudesse chegar no momento seguinte.
O mal é o de quem nada consegue manter porque as necessidades são tantas e os proventos são tão poucos que já não há por onde apertar. Mas, no geral, ainda há muito supérfluo a consumir(-nos).
Há outras visões acerca da crise.
Há outros caminhos para sair da crise.
Mas quem manda é quem despeja sacrifícios sem fim e, como se isso não bastasse, ainda se permite prenunciar amanhãs mais cinzentos.
Quem manda é quem avisa que o pior está para vir.
E quem inspira quem manda vai advertindo que 14 meses de salários é para nunca mais.
Será que a história está no fim ou estes visionários já conhecem a história até ao fim?
«A aversão pós-moderna à simplicidade é uma das coisas que esvaziaram a nossa geração».
Assim escreveu (atenta e magnificamente) David Foster Wallace.
Nas crises, não encontramos apenas perigos. Deparamos também com oportunidades.
Os perigos aumentam se insistirmos no mesmo. As oportunidades crescerão se optarmos pelo diferente.
Todos estamos expostos aos perigos. Todos devemos estar abertos às oportunidades.
As religiões são chamadas a proporcionar uma oferta acrescida de espiritualidade. É isso o que as pessoas mais procuram hoje. E é o que elas têm direito a esperar.
Toda a gente sabe onde encontrar política. Às vezes, ela está até na religião.
Don Delillo, um dos autores mais lidos actualmente, arrasa no diagnóstico: «A religião não é, hoje, uma espiritualidade profunda; é parte da política».
Uma crise, enquanto momento de acrisolamento, pode constituir, para a religião, um regresso a ela própria.
A espiritualidade não é um pretexto para a pessoa se fechar. Pelo contrário, é o melhor meio de se abrir. A partir de si mesma. Do fundo de si mesma!
1. Foi a 21 de Novembro de 1964 que o Papa Paulo VI proclamou Maria como «Mãe da Igreja», isto é, como «Mãe de todo o Povo de Deus, tanto dos fiéis como dos pastores». Esta ideia, aliás, está incoada na Lumen Gentium quando afirma que a Igreja «venera Maria como Mãe amantíssima com afecto de piedade filial», enquanto «Mãe de Cristo e Mãe dos fiéis».
Dada a ligação de Maria a Cristo e à Sua nova corporeidade, a Igreja, compreende-se que, tal como Cristo, também a Igreja esteja marcada ontologicamente pela figura de Maria. A Mãe da Igreja configura, assim, uma Igreja maternal.
De resto, esta índole maternal pode, inclusive, remontar ao próprio mistério trinitário de Deus. Se a Igreja é, como observa Bruno Forte, o ícone da Trindade, ela torna presente no mundo as pessoas divinas.
Estas não podem ser lidas de forma sexista. O esforço da Teologia contemporânea vai no sentido de superar uma leitura masculinizada da paternidade divina. Jurgen Moltmann refere-se à «paternidade maternal de Deus». E é impossível não recordar a célebre afirmação de João Paulo I no dia 10 de Setembro de 1078: «Deus é Pai e, ainda mais. Mãe»!
No fundo, Maria, iconiza para nós a maternidade de Deus. E a Igreja é chamada a presencializá-la constantemente.
Na maternidade de Maria - assinala Bruno Forte -, «o Pai revela-Se como Aquele que, desde sempre e gratuitamente, começou a amar e que, por isso, está na origem de todo o verdadeiro começo de amor gratuito e fecundo no tempo».
Nessa maternidade de Maria, nota-se como «a essência de Deus vivo é o Seu amor em eterno movimento de saída de Si, como amor amante; de acolhimento de Si, como amor amado; de retorno a Si e de infinita abertura ao outro na liberdade como Espírito do amor trinitário: a essência do Deus cristão é o amor no seu processo eterno, é a história trinitária do amor, é a Trindade como história eterna de amor, que suscita e assume a história do mundo».
O seio de Maria é precisamente o veículo pelo qual esta maternidade divina se torna também uma maternidade humana. A Igreja é chamada, nas palavras e nas atitudes, a tornar presente uma atitude materna perante as situações, os problemas e os desafios. «Maria é o ícone maternal da paternidade do Pai». S. Luís Maria de Monfort dizia que foi Deus «que comunicou a Maria a Sua fecundidade para Lhe conceder o poder de gerar o Seu Filho e todos os membros do Seu corpo místico».
3. Maria desponta, por conseguinte, como Mãe da Igreja e, nessa medida. como modelo da Igreja Mãe.
Olhando para Maria, a Igreja, como refere o Concílio Vaticano II, «torna-se também mãe mediante a Palavra de Deus aceite com fidelidade pois, pela pregação e pelo baptismo, gera para uma vida nova e imortal os filhos concebidos por obra do Espírito Santo». Se Maria é inseparável da Igreja e se a Igreja é indissociável de Maria, então a maternidade de Maria estende-se na maternidade da Igreja.
É neste sentido que o tema da Igreja Mãe está já muito disseminado pela Teologia dos primeiros tempos. Imitando Maria, a Igreja é chamada à missão de fazer nascer Cristo no coração das pessoas. Como Mãe, diz S. Paulino de Nola, «recebe a semente da Palavra eterna, traz os povos para o seu seio e dá-os à luz». Tal como Maria, também a Igreja é convidada a ser fecunda na vida da fé, na misericórdia, na tolerância, no serviço generoso, expressões do seu ser mais profundo de mãe na graça.
Na Mãe de Deus, a Igreja encontra o seu arquétipo de povo marcado pelo amor, impelido a gerar filhos para Deus pelos caminhos da solicitude, do acolhimento, da paciência e da perseverança. A Mãe de Cristo converte-Se, assim, na grande figura da Igreja Mãe.
Em Maria Mãe, a Igreja Mãe alcança a sua máxima perfeição. Ela é, como assinalou Otto Semelroth, o seu «gérmen» e o seu «pléroma». Maria é na Igreja - destacou Berulle - «o que a aurora é no firmamento».
4. A esta luz, a Igreja há-de revelar uma conduta marcada pela tolerância, entendida não como último recurso para com aquele que mal suportamos, mas como sintoma do respeito que todos nos merecem. Esta tolerância não é restrita aos que comungam das nossas ideias e pontos de vista. Ela configura a largueza de horizontes do Reino.
Para John Locke, a tolerância autentica o perfil da verdadeira Igreja: «A tolerância a respeito dos que têm opiniões religiosas diferentes é tão conforme com o Evangelho e com a razão que parece monstruoso haver homens afectados de cegueira numa tão clara luz».
Uma Igreja mariana aceita as escolhas de cada um, não recriminando ninguém pelas suas opções. É, de facto, a cada um que cabe a escolha da igreja ou da fé a professar. Ainda de acordo com John Locke, impor uma opção religiosa «não é exigido por Deus, porque em nenhum lado transparece que Deus tenha atribuído semelhante autoridade aos homens sobre os outros homens de maneira a poderem obrigá-los a abraçar a sua religião».
Neste sentido, na Igreja «não deve existir nenhuma coacção; as escolhas serão radicadas, ultimamente, na interioridade pessoal, no mais profundo das almas». As posições de cada um serão tomadas pessoalmente. «Não competem nem ao Estado, nem a um príncipe, nem às próprias igrejas». Nesta linha, «nem o cuidado do Estado, nem o direito de legislar permitem ao magistrado descobrir com mais certeza o caminho que leva ao céu do que a um particular a sua reflexão e o seu estudo».
O respeito pela consciência é um imperativo indeclinável. «Nenhum caminho que eu siga contra a minha consciência me conduzirá alguma vez à morada dos bem-aventurados. Posso enriquecer numa profissão que detesto, posso curar-me graças a remédios em que não confio, mas não posso salvar-me por uma religião de que duvido, por um culto que abomino. Seja o que for que se possa pôr em dúvida em matéria de religião, uma coisa pelo menos é certa; é que nenhuma religião, que não tome como verdadeira, pode ser para mim verdadeira ou útil».
5. Uma Igreja marcada por Maria propõe aquilo em que acredita, mas não condena quem pensa e sente de modo diferente. Abre o coração a todos. Acolhe cada um no seu seio. A tolerância não é um sinal de fraqueza, mas um sintoma de pujança. Fraqueza haverá na atitude oposta. Como referia Andrei Sakarov, «a intolerância não é mais que a angústia de não ter razão».
Haja em vista que a fé não é convincente apenas pela consistência teológica ou pela coerência doutrinal. A fé não é convincente quando os crentes se julgam melhores que os outros.
A fé torna-se convincente quando consegue superar o que é mau e acrescentar o melhor ao que já é bom. Nunca a fé será convincente quando imita o pior e compete com os outros no triste campeonato da iniquidade.
A violência é sempre inqualificável. Mas a violência religiosa é, pura e simplesmente, abjecta. A violência, como demonstram os estudos de René Girard, sempre pairou nas imediações do sagrado. Como é que as pessoas que se consideram mais religiosas desfiguram tão flagrantemente a religião?
Ruiz de la Peña estava certo. É preciso recompor o rosto de Deus. É urgente deixar que Deus seja Deus. Ou será que é preciso descer as escadas do templo para O reencontrar? Por algum motivo Jesus avisou que o verdadeiro culto é o que é prestado em «espírito e verdade» (Jo 4, 23).
Deus pode ser encontrado em qualquer lugar. Mas o melhor santuário é a consciência recta. O coração limpo. O olhar puro. A vida solidária.