1. É difícil encontrar um fio condutor para explicar os acontecimentos.
O desenvolvimento não garante a segurança nem, por si só, oferece a felicidade.
As sociedades mais avançadas têm os seus dramas e não estão isentas de alojar pessoas e organizações com propósitos cruéis.
Os próprios estudiosos têm dificuldade em descrever o nosso tempo.
Vergílio Ferreira anotava que a história é feita de intervalos. Para Marc Augé, que criou o termo sobremodernidade, «não sabemos em que história estamos».
Alvin Toffler limitava-se a verificar que «somos a última geração de uma civilização velha e a primeira geração de uma civilização nova».
2. Sucede que a moldura deste novo mundo é muito híbrida, por vezes parece indefinida.
O local onde tudo se definia (o campo) está praticamente deserto. Onde mais nos encontramos são os lugares de passagem. É o caso dos hipermercados ou dos aeroportos.
Marc Augé caracteriza estes espaços como não-lugares. Neles, há multidões, mas não se chegam a estabelecer relações. Neles, somos capazes de reter caras, mas não de colher grandes impressões.
Os não-lugares não favorecem a permanência. Promovem a circulação e estimulam o consumo.
As pessoas procuram ter uma casa, mas passam pouco tempo nela. No tempo laboral, deslocam-se para o trabalho. Na época de férias, retiram-se para longe.
3. O próprio modo de vestir torna-se cada vez mais incaracterístico. Só em desfiles etnográficos se afere a proveniência, a identidade.
A tendência é para estar em todos os lugares como se estivéssemos em lugar nenhum. Limitamo-nos a ser «turistas consumidores», como diagnostica Zygmunt Baumann.
Um exemplo: ao chegar a uma igreja, não se esboça um gesto de religiosidade; a primeira coisa que se faz é olhar para os vitrais, para o tecto e fazer umas fotos.
Para muitos, até os templos deixaram de ser locais de peregrinação. Tornaram-se meros locais turísticos.
As pessoas vivem nas cidades, mas os comportamentos são cada vez menos cívicos, cada vez menos urbanos.
Hoje, permanecemos cada vez menos e circulamos cada vez mais.
É tudo muito intenso em cada momento. A dimensão de futuro está a esbater-se. A utopia parece esgotar-se. Daí que os economistas e os gestores quase abafem os escritores.
Como falar do futuro se o presente nos traz tão constrangidos?
4. A democracia vai-se generalizando, mas, no fundo e como adverte Marc Augé, a sua configuração assemelha-se «a uma oligarquia planetária».
São poucos os que decidem o destino de (quase) todos.
Já nem os relacionamentos entre as pessoas são sólidos. São até cada vez mais líquidos. Este é, segundo Zygmunt Bauman, o tempo da «modernidade líquida».
Ao contrário dos corpos sólidos, «os líquidos não podem conservar a sua forma, quando pressionados por uma força exterior, por mínima que seja. Os laços entre as suas partículas são demasiado fracos para resistir. Ora, este é precisamente o traço mais marcante do tipo de coabitação humana característico da 'modernidade líquida'».
5. O diagnóstico é de uma clareza diáfana. Será que há coragem para adoptar a necessária terapia?
Não há decretos que valham. Só uma revolução no interior pode tornar tudo diferente, tudo melhor, tudo mais humano, mais fraterno, mais respirável.