Eu sei que esta vai ser uma noite difícil para tantos portugueses que trabalham ou já trabalharam.
Afinal, ainda não vai ser no próximo ano que os sacrifícios vão ser suavizados. Pelo contrário, vão ser fortemente agravados.
E, por este andar, não custa muito imaginar que, daqui a um ano, não faltarão justificações para prosseguir a austeridade em 2013.
A questão que se levanta é: para quê?
Dir-se-á que é para não chegarmos à situação da Grécia. Portugal até pode ter melhor liquidez, mas é bom não esquecer que o salário mínimo na Grécia é quase o dobro do português.
É certo que o memorando da «troika» não deixa margem para alternativa. Mas não seria possível negociar uma moratória nos prazos?
Acontece que, com estas medidas, haverá cada vez menos pessoas em condições de contribuir. Se as empresas falirem e o desemprego aumentar, como se conseguirá descontar?
Entretanto, não se anuncia nenhuma medida para estimular o crescimento da economia.
Não sabemos para onde vamos. Sabemos que não é por aqui que chegaremos ao desenvolvimento e à justiça.
A «doença» era grave. Mas esta «terapia» arrisca-se a torná-la pouco menos que insuportável.
Não deixemos, entretanto, adormecer a esperança. Isto vai ser quase impossível. Mas há-de haver uma luz.
Os cidadãos precisam de mudar. Os dirigentes também. Falta, no país e na Europa, sensibilidade social.
A narrativa é demasiado colada à realidade. É fundamental um golpe de asa que ajude a transformá-la.
Não é com estas políticas que conseguiremos vencer a crise. Será com estes políticos?
Urge uma nova criatividade, uma outra sabedoria. Que venha do coração. E olhe para as pessoas não como activos, mas como seres humanos.
Um novo humanismo tem de pairar na nossa vida cívica.
1. Confesso que despertou a minha atenção a perplexidade do poeta José Miguel Silva diante de uma certa iconografia: «Vês (nas igrejas) os santos vestidos como príncipes, quando toda a mensagem cristã defende o oposto».
Tem razão. Jesus foi pobre. Convida a um estilo de vida pautado pela pobreza e sobriedade. Muitas vezes, andamos empenhados em apontar a Sua doutrina. Esta é importante. Mas o decisivo é a Sua conduta. É viver como Ele viveu.
Para tal, não basta ser o eco das Suas palavras. É fundamental procurar ser a reprodução das Suas atitudes, dos Seus gestos. Daí que falar em nome de Jesus Cristo num ambiente de pompa crie uma profunda sensação de desconforto. A credibilidade fica, imediatamente, ferida.
A este propósito, vem-me à lembrança a alusão que, entre o desapontamento e a ironia, faz Sören Kierkegaard ao bispo de Copenhaga.
Revestido de paramentos com filamentos de ouro e um báculo e uma mitra debruados de pedras preciosas, avança o prelado pela catedral, com todo o seu séquito em esplendor. Senta-se, então, num cadeirão de prata e dá início à sua homilia sobre a pobreza. E ninguém se ri! Se calhar, o melhor seria chorar. É que, sem a ressonância da vida, a palavra não passa de ornamento retórico.
2. Jesus foi pobre. Maria foi pobre. O Concílio Vaticano II afirma que Ela sobressai entre os pobres de Yahvé.
Formada na leitura orante dos livros do Antigo Testamento, Maria conhecia especialmente os Salmos, que surgiram no contexto dos pobres (anawin) de Yahvé.
Enquanto facto social e fenómeno presente no quotidiano de Israel, a pobreza era seguramente um tema de reflexão e meditação. Para uns, a pobreza é vista como castigo de Deus. Para outros, ela decorre da avareza dos ricos e da exploração dos poderosos. Os profetas denunciaram sempre esta pobreza como sendo não querida por Deus. Do mesmo modo, a riqueza que nasce da opressão dos outros não é por Deus desejada.
É neste contexto que Bento XVI explica que existe uma distinção entre uma pobreza evangélica e uma pobreza que Deus não deseja.
Em relação à primeira forma de pobreza, o Santo Padre atesta que Jesus, ao fazer-Se Homem, quis ser também pobre. «Eis a resposta: o amor por nós levou Jesus não somente a fazer-Se Homem, mas a fazer-Se Homem pobre». Contudo, «há uma pobreza, uma indigência, que Deus não quer e que é "combatida": uma pobreza que impede as pessoas e as famílias de viverem segundo a sua dignidade; uma pobreza que ofende a justiça e a igualdade e que, como tal, ameaça a convivência pacífica».
Uma coisa é, portanto, a pobreza como facto, outra coisa, bem diferente, é a pobreza como escolha. Trata-se, por assim dizer, da distinção entre a pobreza como condenação e a pobreza como opção. Os profetas procuraram espiritualizar a pobreza enquanto entrega confiante a Yahvé (cf. Sof 3, 12). Provavelmente, os judeus fiéis constituem aquele resto cuja vibração espiritual está contida em diversos Salmos.
Neste grupo, há um descentramento de si próprio e uma abertura total a Deus, sem qualquer resistência à Sua palavra. É um vazio com sabor a plenitude. Certifica-se, assim, a firmeza da sua fé. Como refere Alejandro Martínez, para esta gente, «vale mais a palavra de Yahvé que as luzes da própria razão ou o desmentido flagrante dos factos. Tudo é noite em seu redor, mas confiam no Deus que firmou aliança com seus pais. A fé que têm não é especulação, mas abandono, entrega e confiança sem limites».
Maria incorpora, no seu máximo grau, a fé como vazio de si mesma e entrega confiante a Deus. É, pois, uma pobreza iluminadora. Enquanto modelo da Igreja, «é a perfeita realização desta e, como primeira discípula de Cristo, caminha à frente de quantos fizeram do seu seguimento um lema de vida».
Em Maria, a Igreja verifica que «a fé só germina em corações pobres», em corações de criança. A fé faz que nunca deixemos de ser crianças. «Não há fé sem mistério e não há mistério sem obscuridade». Ela implica «um desprendimento da própria razão», o que, misteriosamente, contribui para obter uma racionalidade amadurecida. De facto, «silenciar o grito da razão e pôr-se de joelhos perante o mistério é uma atitude audaz e corajosa».
Esta pobreza não impede o reconhecimento do que Deus faz em cada um de nós. A humildade não é a anulação da pessoa, é o reconhecimento da verdade. «O verdadeiro crente há-de começar por reconhecer os dons que Deus lhe deu».
3. Para nós, cristãos, os pobres não são apenas destinatários da pastoral. Eles estão, desde logo e antes de mais, no centro da Igreja. Não fazemos parte somente de uma Igreja para os pobres, mas de uma Igreja de pobres e com os pobres.
Importa não esquecer que, como recorda Louis Châtellier, o Cristianismo é, verdadeiramente, uma «religião dos pobres». Pobre foi o seu fundador. Com efeito, Jesus, que nasceu num estábulo, não tinha, muitas vezes, «onde reclinar a cabeça» (Mt 8, 20). O Seu Evangelho — recorda o cardeal Schönborn — «foi feito sobretudo para os pequenos e para os pobres». E, no Seu código de felicidade, começou por declarar felizes os pobres que o são no seu íntimo (cf. Mt 5, 3).
Os pobres estiveram sempre entre os predilectos de Jesus. A Igreja, enquanto novo corpo de Cristo, era constituída, nos seus inícios, por pobres de facto (cf. Tgo 2, 5) ou por pessoas que se faziam voluntariamente pobres (cf. Act 4, 32-5, 11).
Joseph Ratzinger percebeu muito bem esta identificação de Deus com a pobreza quando escreveu: «A pobreza é a autêntica aparição divina da verdade». Jesus, na pauta que nos dá para o juízo final, assevera: «Tudo o que fizerdes ao mais pequenino dos Meus irmãos, é a Mim que o fazeis» (Mt 25, 40).
Não admira, portanto, que S. Francisco tratasse a pobreza por senhora e Bossuet chamasse aos pobres senhores. A Igreja tem uma obra assistencial muito difundida. Não basta, porém, tal obra assistencial, por muito meritória que seja. É fundamental que, no espírito de Jesus, porfie, em todos os seus gestos, por uma opção preferencial pelos pobres. Essa opção levá-la-á a pugnar pela erradicação da injustiça que, arbitrariamente, atribui tudo a alguns e condena outros a pouco ou quase nada.
Erguer a voz é determinante. Tomar partido é decisivo, embora traga custos. É que o poder, que gosta de distribuir sobras, não admite ser interpelado. É missão da Igreja ser a voz dos sem voz, urgindo uma mais equânime repartição dos recursos. De facto, não há volta a dar: para que os pobres fiquem menos pobres é preciso que os ricos fiquem menos ricos.
Os preferidos de Jesus têm de ser os preferidos da Igreja de Jesus. Cristo era para todos, mas privilegiava a companhia dos pobres, dos simples e dos pequenos. Foi, aliás, em conformidade com este espírito que S. Gregório Magno revelou, no século VI, uma preocupação social que atingia o escrúpulo. Fazia questão de ter uma lista dos pobres de Roma, enviando-lhes alimento e outras provisões. Mas o mais tocante é, sem dúvida, saber que, todos os dias, doze pobres da cidade comiam à sua mesa, à mesa do Papa!
Um século mais tarde, um bispo de Alexandria espantou toda a gente com uma pergunta que fez à chegada: «Quantos são aqui os meus senhores?» Como ninguém percebera o alcance, ele descodificou: «Quero saber quantos pobres temos. Eles são os meus senhores, pois representam na terra Nosso Senhor Jesus Cristo (cf. Mt 25, 34-46). Dependerá deles que eu venha a entrar no Seu reino». Fizeram o apuramento. Havia 7500 pobres, que ficaram a receber, todos os dias, uma boa esmola!
4. Toda a razão tem, assim, S. Gregório: «Quanto mais se desce ao encontro das fragilidades dos pobres, mais se sobe ao cume das virtudes». Não esqueçamos jamais o pobre. É imperioso estar com ele para estar em Cristo. Se Ele nos enriqueceu com a Sua pobreza (cf. 2Cor 8, 9), amemos o Senhor no Sacramento do Pobre (sacramentum Pauperis). Deus está vivo nos pobres, nos esquecidos, nos explorados, nas vítimas da injustiça.
É preciso descer as escadas. É urgente viver a vida das pessoas. É imperioso estar onde está Deus. E alguém pode negar que Deus (também) está na rua? Deus emerge dos escombros desta sociedade que clama por justiça. É aí que, como observou Fernando Urbina, podemos acolher «a grande voz silenciosa de Deus, esse rumor imenso de que fala S. João da Cruz». Muitas vezes, é preciso sujar as mãos para manter limpo o coração.
A Igreja tem de procurar ser espelho e jamais pode ser muro. Deus não está no mundo pela pompa. Deus vem pela simplicidade e pela pobreza. Uma Igreja pobre será (sempre) a maior riqueza que teremos para oferecer.
Steve Jobs não terá sido a pessoa que acumulou mais conhecimentos. Mas foi, sem dúvida, um dos que mais partido tirou dos conhecimentos que adquiriu.
Esta é a diferença entre o mero saber e a criatividade.
Fazendo um uso magistral da intuição, achava que a liderança estava sobretudo na inovação: «Inovar é aquilo que distingue um líder de um seguidor».
Aliás, é essa a grande lição da morte. A morte «afasta o velho para dar lugar ao novo».
Na política como na vida, precisamos de caminhos novos, de propostas diferentes.
Insistir no mesmo (ainda por cima, no mesmo que já provou não resultar) não nos conduzirá a bom porto.
1. Ainda hoje muitos se interrogam como é que um profeta incómodo foi sendo transformado num chefe poderoso. E, concomitantemente, como é que uma mensagem centrada no serviço deu lugar a uma instituição fortemente organizada e a um sistema de poder.
O paradigma Jesus, por nós perdido e tantas vezes desperdiçado, está sinalizado na coroa de espinhos e sobretudo na cruz.
É o paradigma de uma Igreja que respeita os poderes, mas que está distante do poder e que não se concebe a si mesma como poder.
A Igreja recebe de Maria um perfil que a distancia do poder. O Magnificat, neste ponto, chega a ser, como refere Alejandro Martínez, «um cântico de rebeldia».
Com efeito, nele a serena Maria bendiz a Deus que «derruba os poderosos de seus tronos e exalta os humildes»(Lc 1, 52). Segundo Ela, Deus não é imparcial. Ele toma partido e não é pelo lado de cima.
Maria percebe inteiramente onde está Deus. Ela encontra-O nos subterrâneos da opressão a que o Seu povo estava sujeito. Ela também foi testemunha da violência que Roma exercia sobre a região.
Não envereda, porém, pela via da revolta armada e vingativa. À semelhança de Seu Filho Jesus, «denuncia o atropelo, protesta contra ele, mas sem ódio nem sentimentos de vingança. Pede a Deus que faça justiça salvando os que são oprimidos».
Em Maria, a Igreja aprende certamente a respeitar o poder, mas jamais se cola a qualquer tipo de poder. Até porque, infelizmente, nenhum poder humano se aproxima do género do poder de Deus, que é o poder do amor. Deus manifesta o Seu poder «para salvar o homem das tiranias que o escravizam».
2. É neste sentido que pode causar alguma estranheza a situação da instituição eclesiástica. Esta, segundo Paul Hoffmann, parece ter-se distanciado demasiado da mensagem de Jesus, «em que a utopia real do Reino de Deus como reino de bondade incondicional e também de liberdade foi vivida» e proposta.
Às vezes, subsiste a impressão de que, em vez de estar ao lado dos oprimidos, alguns optam por estar ao lado dos opressores. Ou, pelo menos, o seu silêncio leva a que não se demarquem suficientemente.
A proximidade com o poder acarreta um esmorecimento da mística e da profecia. As questões do poder afrouxam a espiritualidade e a intervenção social.
Como é sabido, o momento determinante é o século IV, com o fim das perseguições e a progressiva integração da Igreja no Império. Assistimos, a um tempo, à cristianização de Roma e à romanização do Cristianismo.
A Igreja passa não apenas a legitimar as decisões do poder político (mesmo as mais controversas, como a guerra e a pena de morte), mas organiza-se também internamente num sistema similar.
Só que este não é o caminho de Jesus. Para D. Manuel Martins, «a Igreja tem de viver sempre em tensão com o poder. Caso contrário, não cumpre o seu dever, porque tem um ideal de vida que não se pode conformar com nenhum programa de governo».
3. A memória viva (e vivificante) de Jesus há-de ser sempre a pedra angular e a instância crítica a que tudo há-de estar submetido.
É possível que nem o marxismo tivesse surgido se a memória de Jesus e de Maria encontrasse maior acolhimento dentro da Igreja. A este respeito, o testemunho de Martin Luther King é eloquente: «A grande tragédia é que o Cristianismo não percebeu que tinha em si a semente revolucionária. Não é preciso vir Karl Marx ensinar-nos a ser revolucionários. Eu não recebi a inspiração de Karl Marx; recebi-a de um homem chamado Jesus, um santo da Galileia».
É pela Igreja que vemos Jesus. É por Jesus que urge, cada vez mais, rever a Igreja. Para que se seja outra. Para que seja ela, Igreja de Jesus. Para toda a humanidade.
Uma Igreja despojada será, apenas ela, uma Igreja necessária. E apelativa. Uma Igreja fiel a Jesus não estabelece relações de poder, mas de serviço. A sua preocupação não é mandar, mas servir. Uma Igreja fiel a Jesus pugnará sempre pela justiça entre os homens. Uma Igreja fiel a Jesus não permite que alguém se considere superior ou que alguém seja considerado inferior.
4. Para um seguidor de Cristo, os outros não estão atrás nem em baixo. Os outros vivem ao lado e sobrevivem dentro de cada um.
Afinal, ainda não incorporamos totalmente o Deus de Jesus na nossa vida eclesial. Alguns passos têm sido dados. Mas subsiste um longo caminho a percorrer.