Uma bela oração de Charles Péguy.
«O Homem mais amável do Mundo». Foi assim que Bertrand Russell se referiu a S. Francisco de Assis.
Neste dia da sua memória litúrgica, queria vincar a perenidade da sua mensagem e a flagrante actualidade do seu testemunho.
Como Francisco, é urgente cultivar a pobreza, a humildade e a simplicidade. É fundamental criar uma cultura de reconciliação com a natureza, com as pessoas.
Hoje mesmo, vamos pugnar pela instauração de uma fraternidade universal, de uma filadélfia cósmica.
Num mundo de altos e baixos, de exploradores e explorados, de senhores e escravos, Francisco de Assis ensina-nos o melhor trato entre os seres humanos: irmão.
Ser homem é ser irmão. De todos os outros homens! Há muitos séculos, S. Francisco de Assis percebeu genialmente qual o caminho a percorrer no encontro entre cristãos e muçulmanos.
Este caminho nunca está totalmente percorrido. Eis o que diz S. Francisco ao sentir o chamamento: «Quando Deus me enviou para o meio deles, convivia com eles como com irmãos e amigos».
José Mattoso fez, recentemente, uma referência a S. Francisco de Assis e à sua pureza que consiste em viver «o Evangelho sem glosa». Trata-se do «Evangelho despojado das derivas que foram acontecendo ao longo dos tempos». Trata-se, enfim, de uma procura da «autenticidade inicial».
1. Muito longa é a relação e bastante notória tem sido a tensão, na Igreja, entre carisma e estrutura. À primeira vista, prevalece a impressão de que a estrutura condiciona e quase abafa o carisma.
Sucede que esta bipolaridade pode ser perigosa, porque propende a esquecer a prioridade do Espírito. Tudo o que é eclesial (incluindo, portanto, a vertente institucional) é espiritual, pneumático. Não sendo assim, reduzir-se-ia a Igreja a um grupo portador de uma ideologia.
Com bem realçou Hans Urs von Balthasar, «o ministério está ao serviço do âmbito carismático: a sua função é despertar a vida cristã pessoal e social, promovê-la, podá-la, a fim de que cresça». Procura também impedir «que a necessária particularidade de um carisma ou de uma associação de carismas se feche em si própria, forçando-a a abrir-se a algo muito maior que esse clube carismático, pois tem as dimensões formais do sim mariano: tudo, realmente tudo o que Deus quer, mesmo que esteja infinitamente acima do meu horizonte».
Neste sentido, o ministério «não é o depositário e o guarda de um conjunto de fórmulas, mas sim do mistério para o qual cada fórmula não sabe senão remeter».
Maria e Pedro iconizam estas duas dimensões: «santidade subjectiva do coração e santidade objectiva da estrutura».
Pedro e todos os servidores ministeriais «têm que estar sempre à escuta do Espírito que actua e cria na Igreja mariana, e também obedecer a esse Espírito que fala através dos santos e dos verdadeiros carismáticos».
A estrutura não pode ser, pois, vista como um universo à parte, sem qualquer ligação com o carisma. Quem exerce o ministério não deve assumir-se como um gestor, como alguém que se sinta dispensado de orar, de acolher o Espírito de Deus.
Nunca é demais insistir: o ministério não é um exercício de gestão, decorre de um acto de fé. Ele próprio também é um carisma. Há-de estar, por isso, envolvido por uma respiração espiritual intensa.
Von Balthasar defende a articulação entre as duas instâncias complementarmente críticas: «o ministério, que critica e examina os carismas quanto à sua catolicidade, e a santidade que, partindo do puro espírito do Evangelho e do sim de Maria, pode e deve criticar o ministério».
2. Em Maria, a Igreja encontra assim a prioridade do carisma. É, com efeito, pelo Espírito Santo que o Verbo Se faz carne, que a Palavra Se torna vida, que o Eterno vem até ao tempo.
O carisma de Maria não consiste em operar prodígios, actos assombrosas ou milagres. Ela é a maior carismática, depois de Jesus, porque n'Ela o Espírito Santo realizou a maior das Suas acções: a vinda do Filho de Deus!
É pelo Espírito Santo, que configura a «força do Altíssimo»(Lc 1, 35), que Maria é fecundada. Ela concebe pneumaticamente. Como sublinhou Sto. Agostinho, «Maria concebeu no Seu espírito ante de ter concebdi no Seu seio».
O carisma vai, por isso, muito além da simples natureza. As leis por que esta é regida não são violadas; são, por assim dizer, potenciadas.
Graças ao Espírito Santo, a Palavra vem ao mundo não por um momento, mas para estabelecer morada permanente. De acordo com o Concílio Vaticano II, a Igreja, contemplando a santidade de Maria, «torna-se também ela mãe. Pois pela pregação e pelo baptismo, ela gera para a vida nova e imortal os filhos concebidos do Espírito Santo e nascidos de Deus».
E o certo é que os Padres da Igreja viram no nascimento espiritual de Cristo, isto é por obra do Espírito Santo, o modelo do nascimento da própria Igreja. Sto. Ambrósio, num texto muito sugestivo, diz que a Igreja «dá-nos à luz qual virgem, engravidada não por homem, mas pelo Espírito».
3. É este Espírito que, hoje ainda, continua a animar e a orientar a Igreja. Ele é, como afirmava já Sto. Inácio de Antioquia, o «bispo invisível», aquele que conduz o Povo de Deus.
Nenhum ministério é exercido em função de uma candidatura ou em resultado de uma ambição. Seria transformar um serviço para que se é chamado num poder que se reclama.
O Concílio Vaticano II cita S. Paulo - «a cada um é dada a manifestação do Espírito para o bem comum» (1 Cor 12, 7) - para assinalar que os trabalhos e ofícios na Igreja devem ser encarados como carismas «recebidos com gratidão, pois são perfeitamente acomodados e úteis às necessidades».
Os dons de Deus devem ser acolhidos e repartidos com simplicidade, sem a menor sombra de afectação.
Maria nunca reivindicou qualquer estatuto especial. Como refere Raniero Cantalamessa, Ela como Se deixou «despojar dos Seus direitos maternais sobre Jesus; por assim dizer, privou-Se deles para dá-los aos outros».
A Igreja só cresce na humildade. Quanto mais serva, mais mestra. A lição de Maria é de uma pertinência imprescritível. Ela trazia ao mundo inteiro «a Palavra feita carne e permaneceu tão humilde, tão discreta! Nisso, a Mãe de Deus é verdadeiramente modelo sublime para a Igreja. O que ensina com o Seu silêncio é tão eloquente que não há necessidade de acrescentar nada».
E é assim que, após nos ter dado Jesus Cristo, Maria como que desaparece, como o sal se derrete na água. O que sobressai é a acção dos Apóstolos. Ela fica como uma retaguarda orante, que está sem que seja preciso notar-se muito.
A prioridade do carisma numa Igreja de perfil mariano acentua que ela não quer tomar iniciativa. Põe-se, antes, à escuta do Espírito, dispondo-Se a seguir a Sua inspiração e a pôr em prática a Sua iniciativa.
O Espírito, que é o principal agente da Encarnação, há-de ser também o grande protagonista da evangelização.
4. Numa época tão atribulada como a nossa, encontramos aqui, a par de não poucas adversidades, uma panóplia de possibilidades.
O Espírito tudo supera. O sentido teológico da maternidade virginal de Maria é imensamente fecundo. Dizer que a maternidade de Maria é virginal implica assumir, como nota José Garcia Paredes, que, «na origem de Jesus, só conta, do ponto de vista humano, Maria e mais ninguém». Ela é o único veículo pelo qual «Jesus Se insere na nossa humanidade e através do qual se chega da nossa humanidade a Jesus».
Acima de tudo, o que está em realce é que Jesus é, antes de mais e acima de tudo, «o resultado dse uma inimaginável e poderosíssima acção de Deus Pai na história do mundo e dos seres humanos». O Espírito de Deus «é o grande protagonista do acontecimento da encarnação».
Nenhuma instância humana conseguiu trazer Deus ao mundo. Só o Espírito de Deus. Apenas com Ele também a Igreja será capaz de dar à luz Jesus Cristo: em forma de vida, de testemunho, de esperança e de amor.
Enfim e como alertava José Augusto Mourão, é o Espírito que permite tornar possível o próprio impossível. Ele é, forte e suavemente, persuasivo. «A persuasão é um fruto do jardim do impossível e do inútil. Só o Espírito despertará o espírito, levando-nos da demissão à responsabilidade e à missão».
Foi, aliás, o Espírito que esteve na origem da missão de Paulo (cf. Act 13, 1-3). Continua a ser a experiência do Espírito a mobilizar-nos para a missão de cada tempo, junto de cada pessoa.
Onde há atenção ao Espírito, não existe desatenção à missão. Só Ele consegue ser, ao mesmo tempo, amortecedor de tensões e despertador de energias!