1. Não diria, como Michael Howard, que a paz é «uma invenção moderna». Mas não há dúvida de que os esforços para a implementar de uma forma orgânica não são muito antigos.
E, para nosso pesar, a própria teologia cristã legitimou, muitas vezes, a guerra em nome da ordem.
Santo Agostinho admitia que, dada a condição decaída do homem, a autoridade tinha o direito de impor as suas condições.
A guerra era um dos recursos possíveis para corrigir o mal e para assegurar a ordem aprovada pela Igreja. Como refere Michael Howard, «quem combatia servia os desígnios de Deus de forma em tudo idêntica a quem rezava e trabalhava»!
Foi este tipo de lastro que serviu de suporte, por exemplo, às Cruzadas e à Inquisição. Mas não se combatia só por motivos religiosos. Também se combatia por questões de natureza política.
O nascimento e a consolidação dos Estados são um processo marcado, quase na totalidade, por rios de sangue. Praticamente não há nação que não tenha surgido de guerras duradouras e com muitas vítimas.
É consensual reconhecer que, originalmente, o aparelho estatal nasceu para permitir aos líderes travar as suas guerras.
2. Não admira, por isso, que a defesa mais articulada da paz mundial tenha emergido em meios desligados da Igreja e da política.
Terá sido sobretudo a partir do Iluminismo que uma reflexão consistente sobre a paz começou a ganhar forma. O pensamento começou, finalmente, a deslocar-se da pretensão da ganhar a guerra para o objectivo de conquistar a paz.
O caminho de muitos filósofos foi pondo em causa a autoridade religiosa e política e acentuando a consciência da pessoa como o alicerce mais aceitável da autoridade.
A guerra deixou de ser vista como parte integrante da ordem natural e como instrumento do poder estatal para ser apontada como um monstruoso anacronismo.
3. Immanuel Kant foi quem terá dado, porventura, o contributo mais decisivo, ao alertar não só para a importância da paz, mas também para a necessidade de compromissos para construir a paz.
Foi dele a primeira ideia de constituição de uma Liga de Nações que garantisse a segurança que cada uma procurava individualmente.
Cada Estado deveria estar disponível para acolher cidadãos de outros Estados. Isto iria favorecer a percepção de que, além de elementos de um povo, as pessoas são igualmente membros da humanidade.
Por tal motivo, Michael Howard outorga a Kant o título de «inventor da paz». Mas ele mesmo tinha noção de que se estava ainda no início de um longo e doloroso processo.
Por estranho que pareça, as guerras excitam o sentimento de pertença e alimentam a identidade. Mas se é pela guerra que se desperta para a pertença a uma nação, é apenas pela paz que nos tornamos participantes da comum humanidade.
Devemos a Kant o termos percebido que a guerra pode nacionalizar-nos. Mas só a paz nos humaniza.
E, no limite, a lealdade para com a humanidade prevalece sobre a obediência aos poderes de cada nação.
No tempo da globalização, esta tem de despontar como uma prioridade e o maior dever.
4. Será, contudo, que aqueles que têm feito a guerra poderão, alguma vez, fazer a paz?
A religião e a política, que estão muito comprometidos com a guerra, não podem estar descomprometidos com a paz.
Hans Kung tem insistido numa frase que se tornou axiomática: «Não há paz no mundo se não houver paz entre as religiões».
Para isso, é fundamental mudar de paradigma. A via propositiva tem de prevalecer sobre a via impositiva.
O outro tem de passar a ser visto como irmão e jamais como adversário ou inimigo.
A religião e a política têm de se convencer de que só podem mudar, mudando-se a si mesmas.
Um pressuposto tem de estar na base: não é a ordem que produz a paz; a paz é que produz a ordem.
A paz não nasce da ordem que se impõe. A paz nasce da paz que se vive.
Decididamente, não há caminho para a paz: a paz é o caminho.