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Quinta-feira, 26 de Maio de 2011

«Não há nada mais fácil para uma pessoa "vulgar" limitada do que, por exemplo, imaginar-se a si mesma como extraordinária e original e com isso se deleitar sem vacilações».

Assim escreveu (oportuna e magnificamente) Fiodor Dostoiévski.

publicado por Theosfera às 16:37

1. A religião alimenta o ateísmo e o ateísmo alimenta a religião.

 

Eis um tópico à partida provocador e, sem dúvida, paradoxal, mas que pode ajudar a recolocar as relações entre a fé e a descrença em novos parâmetros.

 

Talvez não nos apercebamos muito disso, mas, de certo modo, o ateísmo vive das incoerências da fé e a fé pode reviver a partir das interpelações do ateísmo.

 

Dir-se-ia que, tal como na física, também em teologia os extremos se tocam e os (aparentemente) contrários se cruzam.

 

Em si mesmo, o ateísmo é uma negação. Mas nem sempre constitui um abandono.

 

Miguel Torga, numa frase que se tornou célebre, deu corpo à persistência do divino na alma de quem o nega: «Deus. O pesadelo dos meus dias. Tive sempre a coragem de O negar, mas nunca a força de O esquecer».

 

Analiticamente, o ateísmo tende a ser estudado no seu conceito e nas suas implicações. É importante que ele seja enquadrado também, a montante e a jusante, a partir das atitudes que lhe subjazem.

 

O ateísmo, não raramente, funciona como um protesto: não apenas contra o mal que existe no mundo, mas igualmente contra as igrejas.

 

Trata-se de um ateísmo que se posiciona como alerta, como denúncia, como aviso e, se for devidamente percebido, como possibilidade.

 

Seria interessante fazer um inquérito para tentar tipificar as motivações do ateísmo no espírito de muitos. Tal como a fé teísta, também a atitude ateísta está longe de ser uniforme.

 

E, se estivermos atentos, verificaremos que muitos são levados para o ateísmo não tanto pelos argumentos dos (que já são) ateus como pelas incoerências dos (que se proclamam) crentes.

 

 

2. Em Dostoiévski, por exemplo, surge, com muita frequência e inusitada intensidade, esta perspectiva. O autor, que era crente e era crítico, aponta, talvez excessivamente, o Catolicismo como o principal fornecedor do ateísmo: «O ateísmo provém do próprio Catolicismo romano!».

 

O maior protagonista de O idiota, o príncipe Míchkin (e que é visto como uma espécie de alter ego do autor), vai mesmo ao ponto de cominar o Catolicismo como «uma crença não cristã» e, nessa medida, «pior que o ateísmo».

 

Segundo o personagem, «o ateísmo apenas propaga o zero», ao passo que o Catolicismo «apregoa um Cristo deturpado, caluniado e profanado», em suma, «um Cristo ao contrário».

 

Afirmando-se contestatário da Igreja em nome de Cristo, põe mesmo em causa que o Catolicismo seja uma religião. Para ele, «é uma mera continuação do Império Romano do Ocidente e tudo no Catolicismo está submedtido à ideia de império».

 

Prossegue o argumentário, que pela desmesurada aspereza me abstenho de reproduzir, para concluir perguntando: «Como podia uma coisa assim não gerar o ateísmo?».

 

O ateísmo será, a esta luz, um «fruto da falsidade» e da «impotência espiritual deles» (dos católicos romanos).

 

Ivan Petróvitch, o interlocutor do príncipe, sempre objectou que, na Igreja, também há «representantes dignos de todo o respeito e virtuosos».

 

O príncipe não contesta e acha que o problema estriba não nas pessoas, mas na «essência do Catolicismo romano». Todavia, «a Igreja nunca desaparecerá»!

 

 

3. O que existe, na óptica do príncipe dostoievskiano, é um desespero, que tanto se manifesta no ateísmo como no socialismo, que na altura já emergia.

 

«O socialismo também é fruto do Catolicismo, da essência do Catolicismo! O socialismo também é, juntamente com o seu irmão ateísmo, fruto do desespero, da oposição ao Catolicismo no sentido moral, é um substituto do poder moral perdido pela religião, um substituto para saciar a sede espiritual da humanidade».

 

Também o socialismo pretende salvar o mundo: «não com Cristo, mas com a violência!». Também o socialismo pretende a libertação, mas «pela violência», pela «espada e pelo sangue».

 

A alternativa passa por fazer «replandecer «o nosso Cristo, o Cristo que nós guardámos e que eles nem sequer conheceram».

 

Trata-se, sem dúvida, do Cristo que, como nos mostra o mesmo Dostoiévski em Os Irmãos Karamazóv, foi detido pelo grande inquisidor porque, entre outras coisas, punha a liberdade de cada ser humano à cabeça de todos os valores!

 

 

4. Não admira que o genial autor proclame Jesus Cristo como o ser «absolutamente belo».

 

A «beleza que salvará o mundo» (talvez a frase mais conhecida de O idiota) é a beleza do que, à primeira vista, não tem beleza alguma: o Cristo tirado da Cruz, «o cadáver de uma pessoa que sofreu infinitamente». É a beleza de quem se dá totalmente. É a beleza de quem se oferece por inteiro. Haverá quadro ou paisagem que possam competir, em beleza, com um gesto deste alcance?

 

 O problema é que este Cristo, muitas vezes, está sozinho. E até na Igreja não terá muitos que O acompanhem. Terá, inclusive, quem O desfigure.

 

Dostoiévski pintaria Jesus «sozinho. Deixaria com Ele apenas uma criança pequena, que talvez Lhe estivesse a contar alguma coisa na sua linguagem infantil. Cristo ouvia-a, mas pensativo. Olharia em frente, para o horizonte; um pensamento, grande como o mundo, repousaria no Seu olhar; o rosto seria triste». E, apesar disso (ou por causa disso) belo.

 

 

5. No ateísmo, pode latejar (quem sabe?) alguma ânsia de purificação. Importa, por conseguinte, estar atento às suas inquietações antes de nos abalançarmos numa possível refutação.

 

Os ateus podem ouvir mais as respostas da fé. E os crentes devem escutar melhor as perguntas dos ateus.

 

Fundamental é haver atenção e nunca deixar de haver humildade. É preciso estar atento ao que se passa e ter vontade de aprender com quem passa.

 

Com muitos ateus, os crentes (e particularmente os cristãos) podem estabelecer pontes que lhes permita recompor o rosto de Deus, tantas vezes descomposto. Não por Ele. Mas por muitos de nós!

publicado por Theosfera às 14:15

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