Mais do que pelos prémios alcançados, O Discurso do Rei vale por alertar para a premência do fenómeno da gaguez.
Julgo que a comunidade em geral (não só a científica) ainda não lhe dispensou a atenção devida.
Figuras como Jorge VI e, entre nós, Maria João Seixas mostram que, em si mesma, a gaguez não é impedimento para se chegar longe na vida. E nem sequer se torna num obstáculo intransponível para a comunicação.
Penso que, hoje em dia, a gaguez já não será um estigma social. Mas há sempre marcas no interior da pessoa.
Regra geral, a pessoa gaga propende a desenvolver uma auto-estima baixa. E se o ambiente circundante não for favorável, pode haver problemas de integração.
Como o gago não se nota muito numa conversação, pode haver tendência para que seja prejudicado. Há notícias de casos a ilustrar isto.
O mais habitual é aferir o estado de espírito da pessoa que gagueja. Quem gagueja está nervoso, assim se ouve amiúde.
A ser verdade, teria de haver muito mais gente a gaguejar.
Do pouco que se sabe (a gaguez nunca foi muito estudada), há um fundo orgânico que provoca, em determinadas circunstâncias, esta situação.
A gaguez pode controlar-se, mas dificilmente se supera completamente.
A terapia da fala obviamente pode ajudar, mas o melhor medicamento é o acolhimento da pessoa tal como ela é.
A gaguez profunda pode ser uma fase passageira ou pode prolongar-se no tempo.
Quanto maior for a pressão, tanto mais alta será a probabilidade de reincidência.
Li, uma vez, o melhor conselho que, a este propósito, encontrei: «Se quer deixar de ser gago, goste de ser gago»!
Recordo uma consulta a que fui ao Porto quando tinha seis anos. A médica pediu-me para fazer um desenho. Ouvida a descrição do mesmo e apercebendo-se do que se passava, disse ao meu saudoso Pai: «Deixe a criança à vontade».
Sucede que, certamente com o melhor propósito, a tendência era (especialmente na escola) para me obrigarem a repetir as palavras até que a dicção surgisse escorreita. Ora, isso levava ao alastramento da gaguez.
Falar tornou-se um tormento. Fui-me, assim, refugiando na escrita.
No início do ano lectivo, eram os meus colegas que davam os meus dados aos professores.
Às vezes, tentava, tentava e nada saía.
Até que, a partir de uma certa altura, quando tinha de ir a qualquer lado, começava por dizer que era gago. E, ao dizer isso, experimentava um alívio muito grande.
Deixei de pensar nisso. Gaguejar tornou-se, para mim, uma situação perfeitamente normal, quase uma componente identitária.
Há, em Portugal, uma Associação de Gagos, que permite a partilha de experiências.
Quem não é gago tem dificuldade em entender o que se passa. E até costuma dizer que também gagueja.
É diferente. Uma coisa é a palavra não sair por qualquer bloqueio momentâneo, outra coisa é uma situação permanente.
No fundo, isto reconduz-nos ao essencial: cada um deve ser como é e sentir-se bem como tal.
Não pode haver estigmas nem formatações.
Uma certa gaguez até será benéfica para todos. Se nos levar a pensar melhor naquilo que vamos dizer.
Na vida, andamos sempre a balbuciar. À procura da palavra mais ajustada.
Demasiada fluência nem sempre traz bom resultado.
Às vezes, o que se diz a medo, com cuidado, não fere tanto como o que sai de modo torrencial, abrupto, desmedido.