Os livros tendem a ser lidos conforme são escritos. A autobiografia de Tony Blair lê-se de um fôlego porque foi escrita de um fôlego.
Tratando-se do percurso de um político, é interessante notar como lhe subjaz o factor humano no mais ínfimo pormenor.
Há, ali, vibração, intensidade, mas também rivalidades, invejas e competições.
Aliás, de certa forma, estamos perante uma espécie de dois em um.
O livro fala de Blair e, quase a par, de Gordon Brown, o grande rival, que se tornou seu sucessor.
De resto, várias vezes aparece a expressão TB/GB.
Há uma marcação mútua entre os dois homens. O partido e o país pareciam demasiado pequenos para os dois.
No entanto e apesar de todas as peripécias, os dois homens conseguiram coexistir no mesmo governo.
Com a autobiografia de Hans Kung parece ocorrer o mesmo. Fala-se quase tanto de Ratzinger como do próprio.
Eis uma grande lição: o mesmo não é nada sem o diferente; o eu não sobrevive sem o tu.
Voltando a Blair, há expressões de grandeza na explanação dos grandes dramas vividos, nomeadamente no que toca à intervenção militar no Iraque.
Este facto haveria de marcar (irremediavelmente) a trajectória de Blair.
Dá para ver como os partidos, na ânsia de sobreviver, são capazes de descartar as pessoas a quem, um dia, juraram fidelidade.
A partir de certa altura, o Labour queria desfazer-se de Blair para continuar no poder. Sucede que a estratégia saiu gorada, pois, com Gordon Brown, veio a derrota.
Blair intuiu o ar do tempo e renovou o discurso e a prática. Ainda hoje, há quem, na esquerda, não se reveja na famosa terceira via.
Parece heresia um político trabalhista criticar Keynes e ser defensor da iniciativa privada em todos os segmentos da vida.
As ideologias são um caldo cada vez mais insosso e híbrido, onde as contradições mais insanáveis aparentam caber.
Há muitas confidências interessantes, como a de ficarmos a saber que foi ele, Tony Blair, o responsável pela canditatura de Durão Barroso à presidência da Comissão Europeia. Um trabalhista apoia, portanto, alguém de pendor mais conservador.
Acresce que faz várias referências elogiosas a políticos de quadrantes opostos ao seu. São óptimas as relações que cultiva com George Bush, com Sarkozy, com Angela Merkel.
Quanto aos Estados Unidos, sublinha a inteligência de Bill Clinton. E, para espanto geral, afirma que o político mais inteligente que conheceu foi o presidente de Singapura.
Fala da vida privada com afecto embevecido. O filho mais novo nasceu-lhe em Downing Street. Mostra-se reconhecido à esposa e reconhece-lhe o espírito independente.
A família real mereceu-lhe o maior respeito e ficou muito marcado pela morte inopinada da princesa Diana. Foi ele o divulgador da expressão que se tornou célebre: a princesa do povo!
Não esconde a delicadeza na relação com a imprensa e a apetência desta para escândalos. Teve de sacrificar vários colaboradores (incluindo ministros) por causa de notícias vindas a público.
Não falta sequer uma menção à relação, nem sempre fácil, com o vinho. Da sua parte, houve sempre comedimento, mas reconhece que há uma tendência para abusos. Afinal, «ser humano é ser frágil».
A saída da política não foi linear e deixou feridas. Sente-se que foi uma decisão tomada a contragosto. Via-se com energia para continuar até porque ainda era novo. «As coisas nunca estão acabadas».
Confesso que esperava que falasse da sua opção pela Igreja Católica. Mas sobre isso nada diz. Fala bastante, contudo, da importância da fé na sua vida.
Aliás, criou mesmo uma Fundação para a Fé, a que continua a presidir.
Diz sentir-se bem na sua nova vida. Até porque (para espanto geral), assume «a felicidade de der uma paixão maior do que a política, que é a religião».
Inesperada, esta confidência.
Para um homem que crê, o maior poder não consiste em mandar, mas em libertar. Nem sempre Blair terá sido coerente. Os extremismos que diz ter combatido no Iraque foram exacerbados.
Fique, entretanto, a lucidez das suas últimas palavras: «Não é o poder da política que liberta as pessoas; o poder das pessoas é que é necessário para libertar a política».
Mas quem está disposto a reconhecer o primado da pessoa e da decisão pessoal?