1. Há imagens da Praça Tahrir que ficarão, para sempre, retidas na nossa memória.
Trata-se de imagens que nos colheram de surpresa e que, por isso, dispensam legendas e nos isentam de comentários.
Quem imaginaria, no início do ano, que muçulmanos aparecessem de mãos dadas com cristãos? Que o Crescente fosse visto ao lado da Cruz?
Afinal, nem sempre é o esperado que ocorre. O inesperado também nos pode visitar.
A história não é uma obra concluída nem um circuito fechado. Como bem lembrou Xavier Zubiri, ela é um sistema aberto, um sistema aberto de possibilidades.
Umas vezes, funciona como obturação. Outras vezes, como é o caso do Egipto, aparece como iluminação.
O século XXI, que começara a 11 de Setembro de 2001 sob a égide da decadência, recomeçou a 11 de Fevereiro de 2011 sob os auspícios da esperança.
Até agora, a revolução do Egipto não esticou para os extremos. Foi desencadeada pela palavra e decidida pela persistência.
Para já, está a conseguir, coisa não desprezível, dois objectivos nada fáceis: derrubar uma ditadura e afastar o radicalismo.
2. Esta proximidade entre cristãos e muçulmanos parece desmentir todo um passado recente. Faz reviver, porém, tempos antigos: os tempos do começo.
É bom que se saiba que, nos inícios, moderação e respeito eram o clima reinante entre os membros destas duas religiões.
Ao conquistar Jerusalém, Omar garantiu segurança aos cristãos bem como às suas propriedades, igrejas e crucifixos.
Em meados do século VII, um patriarca oriental reconhecia que os muçulmanos «não atacavam a fé cristã; antes, pelo contrário, favoreciam a nossa religião, honravam os nossos padres e concediam benefícios a igrejas e mosteiros».
No século IX, Teodósio anotava a subsistência da mesma atmosfera: «Os muçulmanos têm uma grande boa vontade para connosco. Deixam-nos construir as nossas igrejas e observar sem dificuldades os nossos costumes».
Infelizmente, tudo se alterou com as cruzadas. Sob o pretexto de recuperar os Lugares Santos, foram cometidas atrocidades sem fim.
Rezam as crónicas que, em Julho de 1099, os cavalos escorregavam em poças de sangue. O ar estava infectado com o cheiro de corpos em decomposição.
David Hume classificou as cruzadas como «o maior sinal da loucura humana que alguma vez acontecera».
Isto deixou marcas de parte a parte. De resto, nenhuma religião tem o exclusivo da violência nem o monopólio do discurso da paz.
3. É por isso que ainda será cedo decretar que o 11 de Setembro está extinto. A violência é sempre uma ameaça que paira.
Mas creio ser possível afirmar que o 11 de Fevereiro constitui o nascimento de uma nova era.
É notório que o mundo não estava preparado para lidar com o impacto do 11 de Setembro. Estará habilitado para encarar o que se abriu a 11 de Fevereiro?
Daqui a dez anos, que balanço será feito? Irá o 11 de Fevereiro superar, de vez, o 11 de Setembro?
A força da persistência terá capacidade para vencer a persistência da força?
Estejamos atentos. Mas palpita-me que o Egipto está a posicionar-se como um precioso laboratório do que pode ser o futuro próximo.
Tentemos calar os preconceitos. Não consintamos que eles cativem a realidade.
Deixemos, primeiro, falar os factos. Depois, então, falemos nós.